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terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Ao meu antigo senhor

O texto abaixo foi traduzido desse site aqui: http://www.lettersofnote.com/2012/01/to-my-old-master.html

Em agosto de 1865, um certo Coronel P. H. Anderson, de Big Spring, Tennessee, escreveu a seu ex-escravo, Jourdan Anderson, e requisitou que o mesmo voltasse a trabalhar em sua fazenda. Jourdan - que após ter sido alforriado, tinha se mudado para Ohio, encontrado trabalho pago e agora estava sustentando sua família - respondeu espetacularmente através da carta vista logo abaixo (uma carta que, segundo os jornais da época, ele ditou).

Ao invés de citar numerosos trechos de sua carta, eu vou simplesmente deixá-los apreciá-la. Leia até o fim.

(Origem: O livro dos alforriados).


Dayton, Ohio 

07 de agosto de 1865 

Ao meu antigo senhor, Coronel P. H. Anderson, Big Spring, Tennessee 

Senhor: eu recebi sua carta, e fiquei feliz por saber que o senhor não esqueceu Jourdon, e que você me quer de volta para viver com você novamente, promentendo me tratar melhor do que qualquer outra pessoa pode. Eu sempre me senti preocupado com você. Achei que os ianques teriam te enforcado há bastante tempo, por esconder os rebeldes que foram encontrados em sua casa. Suponho que eles nunca ouviram o caso de você ter ido à casa do Coronel Martin para matar o soldado da União que foi deixado por sua companhia no estábulo. Apesar de você ter atirado em mim duas vezes antes de eu te deixar, eu não queria ouvir sobre você ter sido machucado, e estou feliz por saber que você ainda está vivo. Me faria bem voltar para a velha casa novamente, e ver a Senhora Mary e as Senhoritas Martha e Allen, Esther, Green e Lee. Mande o meu amor a todos, e diga a eles que eu espero que nos encontremos num mundo melhor, se não nos encontrarmos nesse. Eu teria voltado para vê-los todos quando estava trabalhando no Hospital de Nashville, mas um dos vizinhos me disse que Henry pretendia atirar em mim se ele algum dia tivesse uma chance. 

Eu queria particularmente saber qual é a boa oportunidade que você propõe me dar. Eu estou indo razoavelmente bem aqui. Ganho 25 dólares por mês, mais provisões e roupas; tenho uma casa confortável para Mandy, - o pessoal aqui a chama de Senhora Anderson, - e as crianças - Milly, Jane e Grundy - vão à escola e estão aprendendo bem. O professor diz que Grundy tem vocação para pastor. Eles vão à escola dominical, e Mandy e eu estamos indo à igreja regularmente. Nós somos tratados gentilmente. Algumas vezes, nós ouvimos os outros dizendo, "Essas pessoas de cor eram escravos lá no Tennesse". As crianças ficam sentidas quando escutam tal coisa; mas eu digo a eles que não foi nenhuma desgraça pertencer ao Coronel Anderson no Tennessee. Muitos crioulos aqui ficariam orgulhosos, como eu era, de chamá-lo mestre. Agora, se você escrever e disser qual salário vai me dar, eu poderei decidir melhor se será vantajoso para mim me mudar de volta. 

Sobre a minha liberdade, que você diz que eu posso ter, não há nada a ser ganho nisso, já que eu ganhei meus papéis de alforria em 1864 do General Marechal do Departamento de Nashville. Mandy diz que ela tem medo de voltar sem prova de que você está disposto a nos tratar justa e gentilmente; e nós achamos que devemos testar a sua sinceridade pedindo-lhe que nos envie os nossos salários do tempo em que lhe servimos. Isso nos fará esquecer e perdoar velhas mágoas, e confiar na sua justiça e amizade no futuro. Eu lhe servi fielmente por 32 anos, e Mandy por 20 anos. A 25 dólares por mês para mim, e 2 dólares por semana para Mandy, nossos ganhos somam 11.680 dólares. Some a isso os juros pelo tempo que nossos salários foram retidos, e deduza o que você pagou por nossas roupas, as três visitas que o médico fez a mim, e o dente extraído da Mandy, e o balanço mostrará que é justo para nós recebermos. Por favor, mande o dinheiro pelo Adam Express, aos cuidados de V. Winters, Esq., Dayton, Ohio. Se você falhar em nos pagar pelos nossos serviços leais do passado, nós só poderemos ter pouca fé em suas promessas para o futuro. Nós confiamos que o Criador tenha aberto seus olhos para todo o mal que você e seus pais fizeram a mim e aos meus pais, ao nos tratar como animais de carga por gerações, sem recompensa. Aqui eu recebo o meu salário a cada noite de sábado; mas no Tennessee nunca houve dia de pagamento para os negros, não mais que para os cavalos e as vacas. Certamente haverá um dia de acerto de contas para aqueles que negam ao trabalhador o seu pagamento. 

Ao responder essa carta, por favor diga se haverá alguma segurança para Milly e Jane, que estão crescidas agora, e são ambas belas meninas. Você sabe como foi com a pobre Matilda e Catherine. Eu prefiro ficar aqui e passar fome - e morrer, se preciso - do que ter minhas meninas abusadas pela violência e safadeza de seus jovens mestres. Por favor, indique também se foi aberta alguma escola para pessoas de cor em sua vizinhança. O grande desejo da minha vida agora é dar às minhas crianças uma educação, e vê-las criar hábitos virtuosos. 

Diga "olá" ao George Carter, e agradeça a ele por tomar a pistola da sua mão quando você estava atirando em mim.

Do seu antigo servo,

Jourdon Anderson.

domingo, 22 de janeiro de 2012

João Pequeno foi pras terras de Aruanda

por Pedro Abib
discípulo do mestre João Pequeno

"Quando eu aqui cheguei, a todos eu vim louvar..."

Deve ter sido assim que mestre João Pequeno de Pastinha cantou quando chegou em terras de Aruanda, lugar mítico, para onde se acredita vão os mortos...que nunca morrem...como se crê em África !

Assim como João cantou tantas vezes essa mesma ladainha, onde quer que chegava para mostrar sua capoeira angola aos quatro cantos desse mundo ... êita coisa bonita de se ver ! O velho capoeirista tocando mansamente seu berimbau e cantando...dando ordem pra roda começar. Os privilegiados que puderam compartilhar com João Pequeno esses momentos, sabem bem do que estou falando.

Foram 94 anos bem vividos. Aposto que daqui não levou mágoa, não era de seu feitio. Inimigos também não deixou, sua alma boa não permitiria. Partiu como um passarinho, leve e feliz, como vão todos os grandes homens: certeza de missão cumprida.

Deve estar agora junto de seu Pastinha, naquela conversa preguiçosa, que não precisa de muita palavra, que só os bons amigos sabem conversar. E seu Pastinha deve estar orgulhoso de seu menino. Fez direitinho tudo que ele pediu: tomou conta da sua capoeira angola com toda a dignidade, fazendo com que ela se espalhasse mundo afora. A semente que seu Pastinha plantou, João soube regar e cultivar muito bem. Êita menino arretado esse João Pequeno !

Nunca foi de falar muito. Só quando era preciso. E nessa hora saía cada coisa, meu amigo ! Coisa pra se guardar na mente e no coração. Mas muitas vezes falava só com o silêncio. Do seu olhar sempre atento, nada escapava. Observava tudo ao seu redor e sabia a hora certa de intervir, mostrar o caminho certo, quando achava que o jogo na roda tava indo pro lado errado. Até gostava de um jogo mais apertado, aquele em que o capoeira tem que saber se virar pra não tomar um pé pela cara. Mas só quando via que os dois tinham "farinha no saco" pra isso. João nunca permitiu que um jogador mais experiente ou maldoso abusasse de violência contra um outro inexperiente ou mal preparado.

Quando tinha mulher na roda então, aí é que o velho capoeirista não deixava mesmo que nenhum marmanjo tirasse proveito de maior força física ou malandragem pra cima de uma moça menos avisada no jogo, coisa comum na capoeira que é ainda muito machista. A não ser que ela tivesse como responder à provocação na mesma moeda. E era cada bronca quando via sujeito tratar mal uma mulher na roda, misericórdia ! Afinal, ele sempre dizia que "a capoeira é uma dança, então como é que você vai tirar uma mulher pra dançar e bater nela ?". Não pode !

A simplicidade, a generosidade, a humildade, a paciência, a sabedoria, a fala mansa e contida, sem necessidade de intermináveis discursos de auto-promoção, eram as características mais notáveis de João Pequeno, próprias de um verdadeiro mestre. Muito diferente do que se vê na grande maioria dos mestres da atualidade, diga-se de passagem, que auto-proclamam sua importância para a capoeira, que fazem e acontecem… que batem no peito e falam, falam, falam.

Nesses quase 20 anos de convivência muito próxima a João Pequeno, tive o privilégio e a oportunidade de aprender algumas das mais caras (e raras) lições de vida e humanidade, que jamais teria aprendido em qualquer universidade, nem sequer poderia obter através de algum diploma qualquer que fosse. Esse homem analfabeto que nunca frequentou os bancos da escola, foi responsável por um legado de ensinamentos que orientam milhares e milhares de pessoas em nosso país e também no mundo todo, que reconhecem o valor de João Pequeno como um dos mais importantes mestres da cultura popular e da tradição afro-brasileira de todos os tempos.

João Pequeno representa a voz de todos os excluídos, marginalizados, oprimidos que através da capoeira encontraram uma forma de lutar e resistir, manter viva a tradição de seu povo e dar legitimidade a uma cultura que foi sempre perseguida e violentada nesse país. O velho capoeirista soube conduzir muito bem sua missão de liderança, responsável pela recuperação da capoeira angola a partir da década de oitenta do século passado, quando após a morte do Mestre Pastinha, se encontrava em franca decadência. Quando se instalou no Forte Santo Antonio em 1981, João iniciou a partir de sua academia um movimento importantíssimo de revalorização da capoeira angola, fazendo com que ela se difundisse e se consolidasse como expressão da tradição popular afro-brasileira, presente hoje em mais de 160 países.

Mas João Pequeno nunca precisou ficar afirmando isso por aí, nem tampouco dizer da sua importância para a capoeira. João é considerado um dos grandes baluartes da capoeira angola, mas ele nunca saiu proclamando isso para ninguém. Na sua humildade nos ensinou que o reconhecimento do valor do mestre tem que vir dos outros, da comunidade da qual faz parte e nunca do próprio discurso muitas vezes carregado de vaidade e arrogância. João simplesmente jogava e ensinava sua capoeira. E por isso era grande !

E de lá, das terras de Aruanda continuará a iluminar os caminhos de todos nós.

João Pequeno não morreu !

* Pedro Abib (Pedrão de João Pequeno) é capoeirista, sambista, cineasta e professor da Universidade Federal da Bahia

terça-feira, 10 de janeiro de 2012

Gentil do Orocongo


Artesão musicalGentil e seu instrumento raro: satisfação por ser reconhecido depois de 40 anos de dedicação ao orocongo

Publicado originalmente aqui.
Gentil do Orocongo
Compondo o som do choro humano

Julia Berutti

Florianópolis ­ Um instrumento raro, vindo da África, incorpora a musicalidade da Ilha de Santa Catarina e participa do Encontro com a Dança e a Músicas Brasileiras, hoje e amanhã, no teatro do Sesc Ipiranga, em São Paulo. Gentil Camilo Nascimento Filho, 58 anos, o Gentil do Orocongo, apresenta-se no espetáculo "Orocongo, Rabeca e Violino", junto com Antônio Nóbrega, idealizador do evento, José Eduardo Gramani (conhecido pesquisador da rabeca), Mestre Paixão e Siba. O Encontro com a Dança e a Música se estende até 1º de agosto.

"É uma satisfação a gente persistir por 40 anos num instrumento meio esquecido e de repente ser reconhecido", diz Gentil. Ontem, na véspera de sua partida, ele se dizia "eufórico", mas parecia tranqüilo frente à primeira viagem de avião e ao fato de ser o único representante de Santa Catarina num evento que reúne músicos de todo o País. Ficou visivelmente preocupado somente quando soube que voltaria na segunda-feira: "Quem vai ficar no meu lugar na escola?" Atualmente, Gentil trabalha como vigia em uma escola básica estadual da comunidade de Mont Serrat, no Morro do Antão.

Natural de Siderópolis, zona mineira do Sul do Estado, Gentil veio ainda criança para Florianópolis, onde se instalou com a família na comunidade de Mont Serrat. Na Capital, ele dedicou-se à pesca e apaixonou-se pelo som que vinha da casa vizinha, onde morava Raimundo, filho de um cabo-verdiano (do arquipélago africano de língua portuguesa). Era o orocongo. Gentil, que nunca estudou música, aprendeu com Raimundo a tocar de ouvido e a fazer o próprio instrumento. Recentemente, fabricou um orocongo a partir do repenique a pedido da escola de samba Copa Lord.

Gentil tira todo o tipo de música do orocongo. Seu repertório valoriza as canções locais ­ "Rancho de Amor à Ilha", de Zininho, e "Vou Botar Meu Boi na Rua", do Engenho ­, passa por "Asa Branca", de Luiz Gonzaga, e vai até as origens com as modinhas que aprendeu com o vizinho: "Ah, ah! Fruta do conde/ castanha do Pará/ a fruta que eu mais gostava/ que nesta terra não há". Hoje, é um dos únicos conhecedores do instrumento.

Na década de 80, Gentil foi "descoberto" por Alan Cardoso, irmão do artista plástico Max Moura, que participava do grupo Pandorga, de Valdir Agostinho. O som plangente do instrumento abre a faixa-título do disco "Vou Botar Meu Boi na Rua", do grupo Engenho. O redescobrimento e o convite para participar do encontro em São Paulo veio com o professor e pesquisador Paulo Dias. Em Florianópolis, Dias gravou cenas de Gentil tocando orocongo para um projeto do CD-ROM "Vozes do Brasil", da editora Ática. O público catarinense vai ter oportunidade de ver Gentil do Orocongo na programação inaugural do Espaço Cultural Embratel, no tributo a Cruz e Sousa, terça-feira, a partir das 19h30.

O INSTRUMENTO

O som do orocongo assemelha-se ao choro humano. Na forma, parece um violino rústico. Com apenas uma corda, tocado por um arco e apoiado na altura do diafragma, o orocongo é confeccionado com a casca de coco ou com o fruto do porongo (também conhecido regionalmente por catuto). O braço é de madeira. Originalmente, a corda do arco era feita de crina de cavalo, e a do instrumento, de tripa. O músico Marcelo Muniz, um dos fundadores do grupo Engenho e diretor de Música da Fundação Catarinense de Cultura, afirma que o orocongo se propagou pela África junto com a religião islâmica, mas não deu origem a nenhum instrumento moderno por ser muito sensível: rico em microtons sem sons intermediários.

"Há similares na China", diz Muniz. Motivado pela curiosidade pessoal, o músico pesquisa o instrumento desde que conheceu Gentil Nascimento, há 18 anos. Ele conhece pelo menos mais duas variações da denominação do orocongo: urucungo, no Nordeste (em iorubá significa "existe nele um buraco" e é o nome antigo do berimbau), e até aricongo, em Florianópolis. Segundo Muniz, é muito difícil precisar a difusão do orocongo no Brasil. "Deve ter outros casos isolados como o de seu Gentil."

Como toda história que se difunde oralmente, a chegada do orocongo a Florianópolis tem aura de lenda. Lembrado somente como "Cabo Verde", o antepassado do professor de Gentil teria chegado junto com um baiano de jangada na Barra da Lagoa, praia do Leste da Ilha, no final do século passado. Os náufragos resolveram morar na Ilha, e Cabo Verde foi cuidar da barragem que existia no Morro da Lagoa da Conceição. Diz a lenda que vivia com três mulheres e teve 36 filhos. Com o colega de naufrágio e o avô do artista Valdir Agostinho (seu Zé), Cabo Verde formou um trio que animava as festas da época: ele no orocongo; o baiano no pandeiro; e seu Zé no violão de doze cordas.

Orocongo, goje, ko

Navegando um bocadinho à procura de atabaques palongo, eu esbarrei no goje - um tipo de violino (ou viola de cabaça) bem parecido com o orocongo...

Palongo

Yusufu Olatunji tocando goje

Goje

Lendo um pouquinho sobre o goje na Wiki, vi que um dos nomes para o instrumento é n'ko - e aí fiz uma ponte: quando assisti "Raízes", uma das coisas que me deixou encucado foi que os descendentes do Kunta Kinte sabiam algumas palavras de mandinka. Uma delas era "ko", que significa... "violino" :-)

Na época, achei estranho a palavra para descrever o instrumento ocidental - nunca tinha parado para pensar que havia um violino mandingo... Volta do mundo.

segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

Sobre a capoeira olímpica


Acho que a maior dificuldade de se implantar uma "capoeira olímpica" está na determinação de um vencedor - algo que todo esporte preconiza: um jogo tem que ter um ganhador e um perdedor, e uma maneira objetiva de contar pontos para decidir quem é quem. 

Entre os esportes reconhecidos pelo Comitê Olímpico Internacional (COI) estão várias lutas: judô, taekwondo e greco-romana (já são olímpicas), karate, sumô e wushu (são reconhecidas, mas ainda não são olímpicas).

Eu me pergunto o que os mestres do taekwondo se perguntaram quando viram sua arte passar a "contar pontos". Mas por outro lado, o taekwondo é uma arte de combate explícito - até onde eu sei, não existe um "jogo" de taekwondo. Então o pulo de luta para esporte fica "fácil".

Particularmente, eu acho que a capoeira não tem nada a ganhar sendo olímpica. "Reconhecimento", o judô e o karate já tinham, muito antes de serem "olimpizados". A capoeira tem que ser reconhecida pelo que ela é: expressão cultural de um povo (o brasileiro), de raiz negra, capaz de criar cidadania e auto-respeito em qualquer outro lugar do mundo em que seja bem ensinada.

Por outro lado, acho que a capoeira tem a perder sendo olímpica: na metodização do ensino, que pode até acelerar o aprendizado, mas que tolhe a espontaneidade; na introdução de regras explícitas do que pode e do que não pode; na figura dos mestres velhos que certamente serão postos para escanteio com mais uma vitória da educação física acadêmica sobre a cultura popular. 

Acho que o capoeirista olímpico tem a perder, pessoalmente. A mandinga não se formata, não se regra, não se mede com nenhuma régua ou balança. O jogo de capoeira não tem sempre um vencedor - às vezes tem dois, às vezes não tem nenhum. E todo mundo que está em volta sabe quem é quem, mesmo sem ter juiz para contar pontos...

No final das contas, acho que é cada macaco no seu galho: acredito até que a capoeira olímpica possa existir, mas perderá sua raiz, deixará de ser a capoeira que admiro. Ela que fique lá no seu tatame, tablado, ringue, arena, octágono, sei lá como vai se chamar. Eu prefiro ficar nas ruas, praças e terreiros, esquentando o chão batido, o cimento ou o asfalto.

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

"Continuaremos lutando para que a capoeira seja adotada como nossa representante cultural"

Mestre Sena
Publicado originalmente no jornal APM, em outubro de 1984

P: Como é que nasceu esta sua paixão pela Capoeira?

R: A minha paixão pela Capoeira foi à primeira vista, quando em 1949. com apenas dezessete anos de idade, fui levado pelo grande capoeirista Adib Andraus a presenciar uma demonstração do Mestríssimo Mestre Bimba, na Sociedade Israelita, no Desterro.

P: O fato de seu filho ter implantado uma Escola de Capoeira na Argentina significa que a sua família acompanha o seu devotado trabalho à causa da Capoeira?

R: Que a nossa família acompanha a capoeira, não há dúvida, em razão de que eu, diuturamente, há três décadas, me ocupo quase que exclusivamente da Capoeira, para que ela exista em estado significante. Mas o fato de o meu filho Yoji ter instalado uma escola na Argentina não contou com o nosso beneplácito em razão de o mesmo não ter seguido convictamente o nosso trabalho quando entre nós morava. A iniciativa dele, guardando as devidas proporções, foi mais ou menos parecida com a de todos aqueles que vêm ensinando a nossa Arte Marcial fora do Brasil, por razões de sobrevivência.

P: Há muita gente se intitulando "Mestre de Capoeira" por aí. Inclusive, em Rio, São Paulo, Brasília e até nos Estados Unidos há aqueles que se propalam "mestres", embora realizem um trabalho passível de questionamentos, até mesmo um desserviço à Capoeira. Como você se sente, com o título de "Mestre" que ostenta?

R: Em primeiro lugar, queremos declarar que a palavra "mestre", na área da Capoeira, perdeu o seu verdadeiro significado. Eram considerados "Mestres", nas rodas empíricas de Capoeira, aqueles que assim eram aclamados por decisão do meio onde militavam. E essa aclamação vinha geralmente da postura Moral e Brava que os mesmos assumiam e demonstravam perante os demais. O exemplo maior desta postura foi Manuel dos Reis Machado, o Bimba.

Hoje qualquer tocador de berimbau ou pseudo-instrutor, sem tradição na roda, e sem nenhuma contribuição ao equilíbrio ou progresso da Capoeira, se intitula "Mestre". Destacam-se no cenário do Brasil, e na Bahia, aqueles que preservam a Arte Marcial Brasileira, enriquecendo-a com uma mentalização cívica e filosófica genuína.

Não podemos deixar de citar os Mestres Canjiquinha, Gato, Caiçara, ]oão Pequeno, Bigodinho, João Grande, Atenilo, Clarindo e o Grande Mestre Waldemar da Liberdade, que criou uma real orquestra de berimbau. Fora desses mestres, há muitos impostores, que se servem da Capoeira, ao invés de servi-la. A quem interessar possa, para evitar o desgaste e a apropriação indébita do título de "Mestre", fizemos editar um manual no ano de 1980 no qual sugerimos um conjunto de parâmetros que, mediante um balizamento pré-estabelecido, possibilite aos que o mereçam, o honroso dignificante título.

P: Que papel desempenhou Mestre Bimba em sua vida?

R: O Mestríssimo Mestre Bimba desempenhou um grande papel na formação de minha personalidade, principalmente pelos ensinamentos que adquiri com o mestre na aplicação da Capoeira como filosofia de vida. Infelizmente, até hoje, Mestre Bimba só foi analisado sob o aspecto belicoso que foi, sem dúvida, uma parte primorosa de sua vida capoeirístíca. É necessário, contudo, que se faça uma ligação maior entre Mestre Bimba e a Capoeira como um todo, pelo muito que se enriqueceram mutuamente e ofereceram ou vêm oferecendo à cultura popular. E esta é uma dívida que cabe a nós resgatar.

P: Nota-se que você é muito mais Mestre Bimba que Mestre Pastinha. Inclusive acha você que mestre Pastinha foi usado por determinados intelectuais baianos de renome. Como situar na história da capoeira baiana essas duas figuras de proa?

R: Mestre Bimba é para a capoeira o que foi Pelé para o futebol, Jesse Owens para o atletismo, Cassius Clay para o boxe. Todos eles se negaram a fazer concessões que descaracterizassem os seus ofícios, embora fossem profundos estilistas e inovadores. Mestre Bimba foi um revolucionário da capoeira, que pode ser considerada como tendo vivido três momentos históricos fundamentais: o da Escravatura, o da República e o de Mestre Bimba. Pode-se comparar afigura de Mestre Bimba à altivez do João Cândido, ao denodo de Martin Luther King, à persistência de Gandhi, à renúncia e idealismo de Rondon. Dois fatos confirmam esta personalidade extraordinária do Mestre Bimba; o primeiro fato foi a negativa dada ao convite feito para que integrasse a Guarda Pessoal do Presidente Vargas, quando a isto o convidaram em pleno Palácio da Aclamação. Ao invés de buscar a glória, preferiu a sua independência, altivez, de que tanto se orgulhava. O segundo foi a sua ida-protesto para Goiânia, recusando-se a regressar à Bahia mesmo estando à beira da indigência. Mestre Bimba não se acomodou, foi um Martinho Lutero da Capoeira. Já o Mestre Pastinha praticou uma Capoeira de alta qualidade técnica, até a idade provecta, mas foi um conservador astuto, e que agradava àqueles que tencionavam folclorizar a Capoeira. A estes Mestre Bimba não deu vez, com receio, inclusive, de ser manipulado.

P: Afinal, por que os dois nomes de "Capoeira Regional" e "Capoeira de Angola"? Tratam-se da mesma capoeira, ou há diferenças básicas?

R: Embora até mesmo muitos envolvidos com a Capoeira não o saibam, o nome de Capoeira Regional nasceu antes do nome "Capoeira de Angola". O nome Regional foi dado por Mestre Bimba que, no seu raciocínio, entendeu que, tendo ele dado uma dinâmica nova, como a criação de um método de ensino, a formatura de alunos, o uso de um traje para eventos comemorativos, a criação de novos movimentos, tirando a Capoeira das ruas e das esquinas para as salas, deveria caracterizar o seu trabalho como "Capoeira Regional Baiana". Já o Mestre Pastinha, contrapondo-se a Mestre Bimba na adjetivação, batizou a Capoeira com o nome de "Capoeira de Angola". E aí foi que muita gente se enganou, pensando que em Angola existe Capoeira. O que não é verdade.

P: Vamos então esclarecer esta dúvida. Há muito professor ensinando por aí que a Capoeira nasceu na Africa. E há autores famosos que espalham esta versão. Afinal, a Capoeira é originária da Africa ou da Bahia?

R: Muitos se equivocam ao dar à Capoeira, como terra de origem, a África. O certo é dizermos que a Capoeira foi criada por africanos mas já em solo brasileiro, no período colonial. Tudo criado em termos de defesa pessoal, já que sofriam variadas perseguições. Sem dúvida que os escravos trouxeram de sua terra um sistema de movimentação corpórea - batuque - que ofereceria as bases de adestramento e possibilidades físicas. A partir desse dado cultural, aperfeiçoado na imitação dos animais encontrados em nossas matas (macaco, onça. raposa e aranha), e aguçado pelo instinto de defesa, sobrevivência e resistência ante as capturas, o negro fez brotar a Capoeira.

P: Nota-se a ascensão de artes marciais alienígenas como judô,  karatê e outras, em detrimento da Capoeira, um esporte e luta genuinamente baiano e brasileiro. Qual a sua posição diante deste fato?

R: Não se trata de ascensão das Artes Marciais alienígenas. O que ocorre é uma submissão de nossa parte à qualidade que acompanha esses esportes, diante de nossos filhos, em termos de apresentação, de infra-estrutura. Elas já vem organizadas em todos os sentidos, enquanto a nossa Capoeira não se agiganta. Há muitos achando que se já existem métodos de defesa pessoal (mesmo não nos favorecendo plenamente, por atender a um homem de outra cultura) devemos alienar-nos e a ela nos adaptarmos. A nossa humilde posição é a que venho assumindo há três décadas em todo o Brasil, lutando para apresentar a nossa Capoeira metodizada, ordenada, treinada espartanamente, como acontece com as Artes Marciais alienígenas. Em um confronto com essas Artes a Capoeira se revela, em termos de Defesa Física, profundamente rica, com recursos inigualáveis.

P: Já que estamos tratando desse assunto, qual a diferença básica entre a Capoeira t as artes marciais mais difundidas no Brasil?

R: Filosoficamente, na sua ação física, a Capoeira coincide com o Judô, pois ambos têm como fator básico de uso, ação e sustentação, o deslocamento do centro de gravidade do elemento humano. No aspecto de aplicaçâo o Judô leva vantagem pois a ação de desequilíbrio deste é realizada através do sistema de alavanca. Os capoeiristas devem, por sua vez, recorrer à inteligência, pois em nossa ação desequilibrante falta um ponto de apoio. E se tenta o desequilíbrio por meio do gingado e da manha, para em frações de segundo aplicar-se o golpe decisivo. Os judokas trazem como frase símbolo "ceder para poder vencer", enquanto os capoeirístas aceitam como máxima "recuar para poder derrotar". O Karatê tem em comum com a Capoeira o deslocamento corpóreo, máxime se o karateka é baiano ou carioca. Mas enquanto a Capoeira e o Judô são artes de derrubar, o Karatê é a arte de quebrar. Enquanto, tal qual o taikendô, de origem coreana, a Capoeira atua em círculo, o karatê ataca e defende em linha. Mas o taikendô é também uma arte de quebrar, diferençando-se da Capoeira e do Judô.

P: A multiplicação de escolas de Capoeira não só na Bahia como em outros estados (São Paulo, Rio, Goiás), e até mesmo nos Estados Unidos, não o deixa satisfeito?

R: Isto só nos deixa tristes, pois essas escolas estão proliferando sem compromissos maiores com a verdadeira Capoeira. Cada professor levanta uma bandeira pessoal na forma de praticar e interpretar a Capoeira. Quase todos eles fazem concessões que prejudicam a imagem da Capoeira como força representativa da cultura e história brasileira. Anticivicamente a maioria desses professores reduz a Capoeira, mercantilizantemente, ao nível de folclore. E com o transplante da Capoeira para os "mui amigos" norte-americanos, estamos na iminência de a Capoeira vir a perder a sua nacionalidade. Pois caso a Capoeira agrade, como dizem que está agradando por lá, logo aparecerão grandes empresas ou fundações que se encarregarão de formalizar a Capoeira, sem considerações maiores com o seu dinâmico e criativo processo histórico-cultural. A título de exemplo, vejamos o que eles conseguiram fazer com o futebol, de repente o Cosmos estava cobrando uma fortuna para jogar no país tricampeão do mundo...

P: O que você acha do ensino da Capoeira, atualmente, no Brasil? Uma revista de grande circulação nacional mostrou professores de capoeira vestidos com roupas balofas e coloridas, como se estivéssemos no Caribe. Nota-se uma grande desinformação da genuína Capoeira em fotos de golpes inexistentes e na emissão de conceitos errôneos a respeito da Capoeira. Isto não preocupa o Mestre Sena?

R: A nossa grande luta, sem fronteiras, é justamente no sentido de tentar evitar a agressão cultural que a Capoeira vem sofrendo. Quanto à revista a que você se refere (inclusive um semanário de grande circulação nacional), endereçamos à mesma uma correspondência protestando contra o absurdo apresentado. Como discípulo do Mestríssimo Mestre Bimba, aprendi a não fazer concessão alguma em prejuízo da Capoeira. E é ridículo o uso de uma outra roupa, hoje, na Capoeira, que não o Abadá. No entanto, as roupas balofas, as camisas de meia e os Jeans têm sido usados largamente por muitos que se dizem corifeus da Capoeira.

P: Como explicar a prevalência do Sudeste brasileiro no que toca à Capoeira? Rio e São Paulo continuam dando as cartas até mesmo em termos de um assunto que eles assimilaram às vezes de forma grotesca e acomodatícia?

R: É isto aí. Assimilaram a Capoeira e usam-na de forma grotesca, acomodatícia e de forma desonesta, tanto histórica como culturalmente. E tomam parte nesse processo Federações e Confederações que através de pelegos esportivos, sem qualquer interesse pelo bem pátrio, por vaidade e mercantilização, terminam por usar a Capoeira de forma espúria.

P: Qual o seu papel na oficialização da Capoeira corno esporte pela Confederação Nacional de Desportos (cnd)?

R: De tanto insistirmos, através dos mais diversos expedientes, junto a diversos segmentos do governo, vimos os nossos esforços coroados de êxito: através do mEc, o cnd resolveu considerar a realidade da capoeira, sancionando-a como esporte. Mas como não poderia deixar de ocorrer, aconteceu a infelicidade de o seu processo ser endereçado à Federação Baiana de Pugilismo, à qual a Capoeira foi agregada. E aí faltou competência para a interpretação devida do parecer do relator, o general Jair Jordão Ramos. Parecer este formulado em 1973. O parecer frisava a necessidade de se constituir um grupo de trabalho que viesse dar a forma e o conteúdo ao novo e oficializado esporte. E por isso até hoje a Federação Baiana de Pugilismo se põe a promover competições oficiais com regulamentos de Escolas de Samba, Maracatu e Bumba-Meu-Boi.

P: Como está o Senavox e quais os seus plano para que as suas idéias consigam ser melhor escutadas em defesa da capoeira?

R: O Senavox, instituição por nós fundada em 25 de outubro de 1955, tem como finalidade precípua e exclusiva a defesa da Capoeira como esporte-luta do povo brasileiro. Uma idéia nossa já foi escutada, a sua oficialização teórica como esporre, em parecer do ministro Jair Jordão Ramos. Editamos também um anteprojeto normativo, que enviamos a várias entidades esportivas, culturais e sociais na esperança de que possa, o mais breve possível, ser discutido. 

Este ano ainda, ou no início do próximo, esperamos poder editar dois trabalhos com os quais queremos esclarecer à opinião pública e alertar às autoridades de que a Capoeira encerra em si uma profunda relevância quanto à sua prática e desenvolvimento, um aliado inestimável no amálgama das características de um povo culturalmente rico, inteligente, criativo, forte e destemido. Os nomes desses trabalhos são "Achismo" e "Defesa". O primeiro explica a posição ambígua em que se colocam os militantes de nossa Arte Marcial perante a verdade. O segundo é uma série de protestos e esclarecimentos endereçados especialmente a órgãos de comunicação do sudeste, pelo (ato de virem colocando erroneamente a Capoeira perante os olhares ávidos de nossos jovens, o que é um desperdício cívico Temos também prontos mais 11 trabalhos, dos quais dois são técnicos, e que esperamos editar em dezembro do próximo ano, ao completarmos 30 anos fechados de uma guerra que não é só minha mas de todo brasileiro que teima em não fazer concessões no que se refere à sua realidade cultural.

P: Não acha você que a criação dessas entidades que visam preservar a Capoeira como elemento forte na cultura nacional é uma utopia? Poderão dar frutos sem uma mudança radical na política do esporte baiano e até nacional?

R: A única entidade que conhecemos com essa finalidade chama-se Centro de Pesquisa, Estudos e Instrução da Capoeira Senavox. E não a consideramos uma utopia. Além de confiarmos em uma mudança na política esportiva brasileira, confiamos que o nosso trabalho de semeadura produzirá os frutos esperados. Além do mais é minha filosofia de vida lutar com unhas e dentes por aquilo que considero justo e verdadeiro.

P: Quais os seus trunfos para que a sua voz se torne mais audível?

R: A transformação dos nossos trabalhos em livros e a sua viabilidade em os editarmos para que sirvam de subsídios aos órgãos de governo, principalmente nos setores de Educação e Cultura, é uma nossa meta. Continuaremos lutando para que a Capoeira seja adotada como nossa representante cultural, da mesma forma que as Artes Marciais do Oriente representam os seus países de origem.