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segunda-feira, 27 de agosto de 2012

"O golpe é como a semente, você não vai jogar em qualquer lugar" - Mestre Decanio


Entrevista realizada por Letícia Cardoso de Carvalho e publicada na revista Praticando Capoeira, ano I, n° 8

Quando começou a treinar capoeira?

Em 1963, com Mestre Bimba. Ele me tratava muito bem.

O senhor formou-se na segunda turma de Mestre Bimba?

Não, não havia turma. Bimba ensinava a seqüência, com seis meses ele formava o aluno, mas uma coisa era formar e a outra era a formatura. Quando eu me formei tinha uma pessoa que tinha entrado depois de mim, uma que tinha entrado antes, mas nós fizemos a formatura todos juntos. Bimba aguardava a oportunidade de juntar mais alunos para fazer uma festa só.

Mestre Bimba mudou o método de ensino e o estilo ao longo do tempo?

Muito. A ponto de ter alunos que não conheceram a capoeira de Bimba que eu conheci. Cada aluno fala de Bimba da época que viveu com ele. Bimba gostava de falar em parábola. Mas Bimba mudou muito no decorrer do tempo. A angola também mudou da época de Pastinha para cá; é mentira dizer que não mudou.

O capoeirista joga diferente, dependendo do ambiente, momento histórico que está vivendo, trajetória histórica dele. A palavra de uma pessoa só pode ser compreendida no determinado instante que é dita, olhada e julgada. Depois, ela perde todo o significado. Nada que é humano é definitivo. Nós estamos em processo de transformação permanente... depois que eu encontro determinada pessoa eu não sou mais o mesmo, eu cresci, mesmo que essa pessoa não preste, se eu souber interpretar eu aprendo com ela.

Não tem ninguém que não possa dar nada a ninguém. A verdade é que a humanidade toda é uma unidade. Não adianta querer julgar Bimba pelas minhas palavras ou pelas de Hélio. Eu posso dizer que eu não conheço ninguém que eu possa comparar a Bimba. Para nós todos ele era o pai, o paradigma do pai. O que a gente tem que aprender é a verdadeira lição que a capoeira dá: somos todos irmãos. A coisa mais gostosa é a gente encontrar um ex-companheiro de capoeira. A capoeira une todas as gerações, todos os homens. Ele permite que cada um seja ele próprio, cada um faz a capoeira que é capaz.

O senhor acha que está tendo muita agressividade nas rodas de capoeira hoje em dia?

Não, na grande maioria das rodas eu vejo a camaradagem. Mas eu vejo uma coisa que não é para ser feita na roda, que me preocupa: cada um está jogando capoeira como se não existisse o outro. Estão soltando golpe de torto a direito e sem querer acertam o outro. A primeira regra que a gente aprende é que não se solta um golpe sem ver onde vai pegar. Não se solta um golpe sem primeiro cavar a oportunidade do golpe ser eficiente. É como a semente: você não vai jogar em qualquer lugar do solo. O golpe é como a semente, tem que selecionar o lugar para aplicá-lo; isso é o que chamam de armar o golpe. Hoje ninguém está estudando o jogo, está dando pontapé, cabeçada, salto, como se estivesse sozinho na roda. Não desenvolve a parceira, a audácia, a noção de desequilíbrio e cria sltuações de acidente. Essa é a única coisa que é lamentável para mim.

Outra coisa que me preocupa é que estão acelerando o ritmo da capoeira cada vez mais e consequentemente não há oportunidade de se ver o que se está fazendo na roda. Eles ainda não perceberam que essa angústia, esse ritmo acelerado, nos leva a um estado de consciência diferente da vigília. Nesse ritmo, você faz movimentos com propósito de agressão e às vezes você entra num movimento que pode até matar o outro. O ritmo acelerado fez você perder a consciência, o que poderia ser freado não é mais. Bimba não admitia um golpe na capoeira que não pudesse ser utilizado numa luta. Outra coisa errada que eu vejo é o capoeirista inclinar o corpo para trás para se esquivar do golpe; isso é errado, o certo é você acompanhar o golpe esquivando-se e não jogando o corpo para trás.

Até quando o senhor teve contato com Mestre Bimba?

Até a véspera dele ir para Goiânia.

Como eram os treinos de emboscadas feitos por Mestre Bimba?

O treino de emboscada não pode ser reconhecido como emboscada, pois o intuito não era fazer a emboscada e sim fugir da emboscada. Era dado um trajeto para o capoeirista. e no meio eram colocados obstáculos para não deixá-lo passar e chegar ao final: se o capoeirista fosse detectado nessa área, ele tinha sido pego, aí a brincadeira acabava. O treino de emboscada não era feito para o capoeirista apanhar, e sim para ele aprender a fugir das emboscadas; não era guerrilha e sim fuga. Você tinha que passar pelas armadilhas sem ser pego; se fosse pego não era aprovado; não tinha essa de bater no capoeirista porque ele foi pego. Se o outro pegasse o camarada, acabou, ia comemorar e não bater. Era igual brincadeira de criança, o pega pega, pegou já era, já mostrou a falha. Com o passar do tempo houve uma modificação no conceito do treino de emboscada, onde esse passou a ter caráter de luta: o emboscado passou a bater no emboscador. Nada em capoeira é para bater.

Quais são seus planos na capoeira? 

Continuar vivo e dizendo a verdade.

"Minha imagem é minha cabeça" - Mestre Curió


Publicado originalmente no fanzine Mandinga, em 7 de junho de 1998

Quem é o mestre Curió?

Meu nome é Jaime Martins dos Santos, uma pessoa muito sofrida e vivida no cenário da capoeira nacional.

E o apelido de Curió?

Meu avô também era capoeirista e se chamava Curió, e esse nome surgiu por causa disso, quando eu comecei na capoeira todo mundo falava, "É o mesmo jogo do avô!". Tentaram uma época me chamar de Dois de Prata, porque eu usava muita prata, mas não pegou.

Como foi que o senhor entrou para o mundo da capoeira?

Eu comecei capoeira com seis anos, e nem gostava muito, mas eu estudava numa escola, e tinha uns amiguinhos maiores do que eu, e eles aproveitavam do meu tamanho e me batiam mesmo. E eu tenho toda minha família de capoeiras, eu senti que estava na hora de aprender, aí cheguei pro meu bisavô e disse: "Eu preciso jogar capoeira", e ele respondeu: "Muleque, você já quer jogar capoeira, mas você não gostava!" Aí eu expliquei tudo a ele. Na primeira aula ele me espancou o que pôde, mas eu aguentei, e quando voltei para a aula, já mais esperto, os garotos quando vieram me bater esbarraram no meu pé e na minha cabeça.

Qual foi o seu contato com Pastinha ?

Minha relação foi através do finado mestre Besouro de Santo Amaro, meu bisavô, ele me disse que se eu quisesse continuar com a capoeira, tinha que procurar Mestre Pastinha, porque só ele era angoleiro de verdade e de confiança.

Como era o Mestre Pastinha ?

Era uma figura incalculável, sutil, muito educado e que fazia seu trabalho com muita sinceridade e honestidade, mas era rígido, muito rígido, e foi  graças a essa rigidez que ele deixou tantos alunos bons.

Como era a relação entre aluno e mestre ?

Hoje os alunos querem que o mestre corra atrás deles, mas, naquela época, os alunos é que corriam atrás do mestre, porque tinham interesse. Hoje não levam capoeira com sinceridade, senão seria outra coisa!

Qual a importância da capoeira Angola hoje em dia ?

A importância da capoeira Angola naquela época e hoje em dia, para mim, é a mesma coisa, porque eu continuo com essa fidelidade que Deus me inspirou, e me nomeou mestre por Pastinha, meu avô, meu bisavô, e que me fez encarar a capoeira de corpo e alma. E eu a faço com muita sinceridade e responsabilidade como aprendi na Escola Mestre Pastinha, e tudo aquilo que eu achei lá, é o que eu estou transmitindo para os meus verdadeiros alunos, aqueles que querem me acompanhar e que querem a verdadeira capoeira Angola.

Como você vê a evolução da capoeira ?

Eu não vejo evolução, para lhe ser sincero, eu vejo é a perdição. A capoeira é muito rica, ela não precisa de infiltrações de outras artes marciais, porque ela foi a primeira luta no Brasil, e ela já traz sua filosofia. E hoje, o que eu vejo é a descaracterização, estão tirando o brilho, a essência, o patrimônio da capoeira, botam luta-livre, judô, karatê, eu gostaria que as pessoas olhassem com mais sensibilidade. E hoje, como Presidente da Associação Brasileira de Capoeira Angola (ABCA), eu estou brigando em busca da originalidade na capoeira, porque, meu amigo!, angoleiro, na Bahia, atualmente tem muito pouco, porque jogar no chão é uma coisa, descer é outra coisa e jogar Angola é outra coisa. Porque capoeira Angola é somada, multiplicada, dividida e subtraída.

E o futuro...

Eu não vou ficar para semente a vida toda, e a minha preocupação é com meus alunos, eu quero que eles tenham alguma coisa de mim quando eu fechar os olhos, quero fazer o mesmo que Pastinha fez, deixar alguém para levar essa capoeira mais a frente e não deixá-la morrer. Eu quero ensinar muita capoeira e ver se ganho algum também... Não posso mais fazer as coisas de graça, estou chegando numa certa idade, já passei da metade e não quero morrer à míngua, pedindo esmola aos leitos de hospitais públicos, como aconteceu recentemente com mestre Bobó, Waldemar, meu mestre, mestre Bimba também e eu estou preocupado. As pessoas só olham os mestres depois de mortos, eu digo aos meus alunos - se quiserem fazer algo por mim, façam enquanto eu estiver vivo, porque depois de morto não estarei vendo nada. Eu não quero morrer e deixar minha família passando necessidade, com meus à toa como os filhos de Bobó, que era uma pessoa que tinha alunos em tudo que é lugar do mundo, e estes, quando ele estava no hospital, nem ligaram! E aí fica difícil. Eu tenho fé em Deus, nos orixás, Cosme Damião, que eu vou obter sucesso. Minha imagem é minha cabeça, e eu não estou aqui me preocupando com o poder, com cargo, nem com força, estou preocupado com a capoeira.

Religião...

Eu vou em todas religiões, acredito em tudo e desacredito em tudo ao mesmo tempo, mas a que eu tenho mais ligação é a umbanda, porque a capoeira Angola, de certa forma, é umbanda. Eu tenho descendência de africano, de nagô, de índio, então eu estou mais para a magia negra.

Sucesso...

Quando seu sucesso atrapalha alguém eles fazem tudo para lhe derrubar. Às vezes eu digo - não me atrapalhem que eu não sou rico, apenas trabalho para sobreviver, eu não tenho inveja de ninguém, o mesu Deus seu, é o mesmo meu, quando o seu mundo termina o meu começa. Se você não puder me ajudar, não me atrapalhe!

Como o senhor vê esse grande número de academias pelo Brasil, ensinando a capoeira regional ?

Eles às vezes se ferem quando mestre Curió fala, mas eu falo porque tenho êxito, e a capoeira que fazem por aí é puramente de exibição, sem essência. Dizem que é a capoeira Regional de mestre Bimba, mas até a capoeira de Bimba deixou de ser a mesma, a capoeira dele era gostosa, cheia de artimanhas. Nessas academias o que se vê é o cara tomando bomba, fazendo halterofilismo para ficar que nem o Hulk para jogar capoeira, enquanto a capoeira não precisa nada disso, porque não se mede o homem pelo tamanho e pela estatura, e sim pela sua capacidade.

terça-feira, 7 de agosto de 2012

Pareidolia: cara de um, focinho do outro

Tenho visto circular pelo Facebook a imagem abaixo, que compara o belíssimo rabo-de-arraia do Cezar Mutante a um suposto "desenho antigo" mostrando um capoeirista acertando o mesmo golpe em um oponente.



Eu nunca tinha visto o tal "desenho antigo", e fiquei curioso para saber de onde o mesmo vinha - certamente não pertencia aos artistas "clássicos" que ilustraram a capoeira em tempos pré-fotografia: Debret, Rugendas e Harro-Harring.

"Dança de guerra" - Rugendas

"Negros dançando" - Harro-Harring

"Escravo tocando berimbau" - Debret

Muito menos pertencia a outros artistas mais "modernos" como Kalixto ou Carybé...

Carybé

Kalixto

Com a curiosidade cada vez mais atiçada, prestei reparo no texto do rodapé do "desenho antigo" - que me levou até o site da BNF (Bibliothèque Nationale de France). Lá, encontrei um texto falando sobre a "diamanga malgache" (o mesmo nome citado no rodapé do "desenho antigo"). Como não sei ler francês, usei o tradutor do Google para me ajudar (traduzi apenas parte do texto original). O resultado foi o texto abaixo, inferido e completado por mim a partir do resultado da tradução automática:

Antes da ocupação francesa, os malgaxes praticavam o esporte, mas à sua maneira.


Havia vários tipos de esportes, como "balahazo", o "tolona", o "totohondry", o "vikina" e o "diamanga". E este último foi o mais popular. Consiste na troca de chutes entre adversários. O "diamanga" é lutado por dois jogadores apenas, ou entre dois grupos que fazem vários jogos - cada bairro, cidade e aldeia  tem seus campeões.


E reuniões entre os campeões são sempre eventos sensacionais para os espectadores, que vinham às vezes de longe para participar das lutas - exatamente como acontece hoje em Tananarivo durante os jogos de rugby entre equipes do campeonato na capital.

Bem, então agora sabemos que há uma luta de chutes originária de Madagascar (pátria dos malgaxes), chamada diamanga, que tem pelo menos um golpe parecido com a capoeira. Desse ponto em diante, eu não consigo mais entender a relação entre o desenho escolhido e o título da imagem, "Capoeira luta eficiente".

O que a pessoa quis dizer com "no passado" ? Que a capoeira é descendente da diamanga ? Ou quis simplesmente ilustrar uma crença (a de que a capoeira sempre foi uma luta perigosa) a qualquer custo, e para isso usou a imagem que tinha à mão ?

Camaradas, a capoeira não é diamanga. Capoeira não é l'ag'ya. Capoeira não é danmye. Capoeira não é moring. Capoeira não é mani. Capoeira não é n'golo. Que são todas frutos da mesma raiz, negra e forte, disso não há dúvida - mas querer reduzir uma à outra apenas para provar um ponto de vista, no meu modo de ver, é uma grande injustiça para com todas essas lutas.

Mas talvez o ponto é que o autor da imagem não tenha tido a intenção consciente: ele pode simplesmente ter sido vítima da pareidolia. Esse fenômeno comum é um truque que nosso cérebro aplica em nós: os humanos são programados naturalmente para reconhecer padrões de imagem. É por isso que olhamos para uma nuvem e vemos "um castelo" ou "um tigre"; é por isso que vemos o rosto de uma santa na condensação de vapor na janela... O que você vê nas imagens abaixo ?

Uma cara na rocha ?

Um leão, ou uma árvore cortada ?

Uma tartaruga com um sapo nas costas, ou um cogumelo ?

Uma caixa "espantada" ?

Um peixe-ovo


E nas imagens abaixo, o que você vê ?

Capoeira ? Não, n'golo.

Capoeira ? Não, moring.




Capoeira ? Não, savate - que sequer tem raiz negra...


As últimas imagens não são exemplos clássicos de pareidolia, porquê não fazem com que o observador veja objetos que não existem. Mas não deixam de ser pareidolia no sentido de que levam a entender algo que não é real.

 De tudo o que foi dito, eu quero frisar algumas coisas:

1) a necessidade de se provar um ponto de vista usando quaisquer argumentos. Vi isso acontecer recentemente com a publicação de uma foto do Cacique Raoni "chorando por causa da construção de Belo Monte". A foto era real, mas a situação em que ela ocorreu, não era. O choro do cacique aconteceu alguns anos antes do assunto Belo Monte surgir. Pergunto então: se pretendemos lutar contra uma mídia inconsequente e que forja fatos, é válido usar as mesmas armas que ela ? Informação é poder, e informação falsa é poder falso. Eu acredito que dois erros não fazem um acerto.

2) a necessidade de provar que a capoeira serve para a luta física. Primeiramente, me espanta que alguém que conheça a capoeira ainda tenha dúvida. Depois, me espanta o fato de alguém acreditar que uma vitória no ringue usando golpes de capoeira prova a eficiência da capoeira - como se a derrota no ringue provasse que a capoeira não é eficiente. Não existem estilos perfeitos, existem lutadores perfeitos. Praticantes de capoeira podem lutar, perder ou ganhar - mas como Mestre Pastinha bem disse, "caso a capoeira falhe, será culpa dos capoeiristas".

Para terminar, uma bela imagem...

Capoeira? Sim! O Mestre Camisa Roxa aplica uma pantana em Fernando Pallos (1969)


No passo do urubu malandro

Texto: Carlos Eugênio Líbano soares

João Batista já tinha arriado quando viu cambando o pardo Marcelino, escravo de um tal Mendes Viana. O pardo era carrapeta, mas o João teve medo de ser agaturrado. Não iria cair na ébia, nem desgarrar como um capadócio que via um chanfalho qualquer, muito menos espirrar ou botocar. Nas rodas de capoeiragem da rua da Vala, mesmo pronto, João era leal, conhecido como um que firma.

Mas o pardo começou a florear, lustrar, figurar na sua frente, e ele ficou de guarda alta para não cair na lodaça. Começou a pegada como uma caveira do espelho, e João soube aprumar-se, dando uma carrapeta. A cambachilra atordoou o cativo. João tentou uma calçadeira, mas o cativo era bom de pulo. Ele então ficou caranguejando, ladeando. O pardo deu uma passarinhada, que fez João Batista cair num passo do constrangimento. Ele levantou-se, mas não estava lanhado. João começou a espalhar-se, a esperar. Nisto um estranjaparou para assistir a cena.

O pardo escravo era bom do jocotó, sabia fazer letras, era hábil no laço. João Batista não viu o pardo com um manhoso. Preparou seu passo. Deu uma pantana que o pardo foi cair nolajedo. Este se recuperou com uma rabanada, mas o livre escapou rabejando. O cativo aí tentou matreiramente passar um rabo de Galo. João Batista achou que aquilo era coisa dePiaba. Antes do bote ele deu um magnífico rabo de arraia, que derrubou o escravo com sardinha e tudo. João Gritou: "Se aprume, quero ver melado".

Irado, o pardo partiu para encher como um tira-teima que resolve a turimbamba. Mas levou uma tunga e ficou ali mesmo. O boche, com cara de bife, olhava com gozo a Dança de Velho. Após rabear frente aos tentos do João este acertou uma pantana no Marcelino, que tungado, tentou trastejar junto ao bamba, mas tava pangaio. O mofento estava pronto, e ainda levou uma lamparina. Lanhado, ele saltou fora.
João Batista seguiu seu caminho, como um urubu malandro, enquanto o godeme assistiu tudo, com ar de mahana.

Roda...

O texto acima é uma narrativa imaginária de um combate de capoeiras nos tempos idos do Rio imperial, usando a gíria das antigas maltas. Estas gírias foram recolhidas por Jair Moura em seu livro Mestre Bimba: A crônica da capoeiragem, Salvador, ed. do autor, 1993. Pp. 65-66

segunda-feira, 6 de agosto de 2012

Tai sabaki e o jeito que o corpo dá

Apesar de nunca ter praticado outra luta que não fosse capoeira, sempre gostei de ler sobre artes marciais e correlatos. Gosto de comparar estilos, não no sentido de "qual é melhor", mas sim de "quão parecidos ou quão diferentes" - afinal de contas, todos os praticantes são humanos, e o corpo humano só consegue se mover dentro do limite de suas articulações.

Por esse motivo é que há chutes parecidos com o "martelo" no karate, no muay thai, no savate e no boxe chinês: um chute frontal, com o quadril rotacionado. O mesmo vale para joelhadas, socos, etcetera. Ainda que uma arte marcial use mais de um e menos de outro, ou mesmo que não use algum tipo de golpe, todo lutador está limitado a fazer o que seu corpo permite.

Um amigo é praticante de diversas artes marciais orientais (karate, judo, ninjutsu), e já conversamos bastante sobre o que diferencia e o que aproxima os nossos estilos. Certa vez, ele comentou comigo que uma coisa que achava muito bacana na capoeira, muito mais do que os golpes, era o tai sabaki. Quando viu que eu não tinha entendido do que se tratava, explicou: o tai sabaki é a movimentação do lutador, o "gerenciamento da posição", a "gestão do corpo".

Em artes marciais orientais, a técnica é usada para medir as distâncias, evasão, e mesmo conversão de defesa em ataque. Segundo a Wikipedia, "sua maior finalidade é justamente evitar o enfrentamento direto, evitando, pois, um ataque e, na sequência, deixar a pessoa numa posição vantajosa. (...) não se deve resumir tai sabaki apenas como esquivas".

Veja que interessante! A finalidade primária do tai sabaki é uma das grandes posturas filosóficas da  nossa amada capoeira: ela não foi criada como arma de enfrentamento direto. O negro, escravizado e em situação de desigualdade completa, valia-se da astúcia mais que das pernas. A capoeira era "dança" aos olhos do senhor, para só se manifestar como luta valente nas horas certeiras - e essas horas certeiras tinham que ser bem medidas pelo negro (sob pena de morte, em caso de erro): atacar na distração, atacar quando tinha certeza da vitória, atacar quando a superioridade númerica ou de armamentos do escravizador pudesse ser ludibriada.

Conforme o Mestre Bola Sete bem descreveu em seu livro "Histórias e Estórias da Capoeiragem", o capoeirista tem "a obrigação de chorar no pé do seu inimigo", para que esse, relaxado e até mesmo desprezando o oponente, possa ser pego de surpresa. 

Mestre Pastinha se referiu ao mesmo fato quando falou sobre o "capoeirista correr, e ai de quem correr atrás dele", pois "o capoeirista corre para não ter que matar". A capoeira é uma luta bravia e perigosa, mas que tem seu maior trunfo na dissimulação, em fazer o outro pensar que o capoeirista vale menos do que ele. 

Já o Mestre Duquinha, em sua bela entrevista, comenta uma das "regras não ditas" da capoeira:

Fazer sempre o papel do agredido ou do inocente. Como sua situação é de total desamparo social e jurídico, ser tido por agressor equivale à morte. Daí a malícia do capoeira: ele bate, mas como quem está apanhando; se recebe um golpe deve gritar e chorar como se a dor fosse muito superior à real, provocando compaixão ou desprezo... Pode desfazer-se em súplicas de misericórdia enquanto prepara um golpe fatal...

Nunca tive dúvida de que a capoeira servisse para quebrar um osso, romper uma costela, tirar uma vida. A história mostra isso, e a física das alavancas está do lado da capoeira: um pé rodando tem a força de uma pedra atirada com força, uma rasteira encaixada quebra um braço ou um crânio. No entanto, o capoeirista moderno parece precisar mostrar que é capaz de exercer a violência da luta, e que ela é eficaz. 

Tenho visto cada vez mais a capoeira chegar à mídia através de torneios de luta aberta, MMA e similares. Entendo que isso é um sinal dos tempos, pois hoje em dia quer-se ter a violência contida: é melhor lutar no ringue, com regras definidas, do que brigar na rua ou na roda. 

Nada contra quem gosta ou participa desse tipo de evento (eu mesmo gosto de assistir, embora não pratique MMA), e acho que o raciocínio "lute no ringue, não brigue na roda" faz muito sentido - mas o que ele prova em relação ao que a capoeira-luta consegue fazer ?

Dentro de um ringue, não há dissimulação, não há espaço para isso. Os dois lutadores sabem que só vão sair dali quando houver um vencedor. A "surpresa" não pode ocorrer, pois como um capoeirista vai "chorar no pé do seu adversário", quando já se sabe que a luta só termina com o nocaute ou a rendição, sem espaço para a apelação ? Em uma situação de luta real, o capoeirista poderia "render-se", para então derrubar seu inimigo quando esse lhe desse as costas. Num ringue, isso é impossível.

O ringue exige a luta objetiva, enquanto a capoeira-luta é subjetiva - o que não deve ser entendido como "sem contato" ou "fraca", e sim como "malandra", "sem regras". Vide Mestre Pastinha dizendo que a "as brigas de capoeira nas docas, ninguém podia conter". Não cabiam em ringues... Podemos ter certeza que um rabo-de-arraia bem dado derruba qualquer forte, e inclusive temos visto isso acontecer - mas prova realmente que a capoeira é luta perigosa ? 

Pode-se argumentar que o faz-que-vai-e-não-vai da capoeira pode ser provado no ringue. E talvez possa mesmo. Mas qual estilo de luta não tem um faz-que-vai-e-não-vai ? Toda luta tem elementos de tai sabaki; todo ser vivo que luta (por comida ou por sua vida), a menos que seja MUITO mais forte que o adversário, precisa em algum momento tentar enganá-lo para obter a vitória.

No meu entendimento, os golpes, gingas e negaças da capoeira no ringue, não provam o valor da capoeira enquanto luta. Provam sim, o valor dos golpes, gingas e negaças da capoeira - e estes tem muito valor, sim senhor.

O valor da capoeira-luta é provado quando o capoeirista consegue sair do aperto sem precisar lutar, só ludibriando. Ou quando mesmo em situação de enfrentamento direto e inevitável, ele leva o adversário na conversa, até o ponto em que possa dar o golpe certeiro - aquele que incapacita o inimigo, ou o "coloca para dormir". 

O meu amigo, sendo ninjutsuca, comentou uma vez que gostava de comparar os capoeiristas aos ninjas. E antes que você, leitor, comece a achar que o ninja era o cara que dava gritos loucos, jogava "estrelas", fazia saltos mortais acrobáticos e soltava bombas de fumaça, lembre-se que isso aí é coisa de cinema. Os ninjas reais eram artistas marciais treinados para missões de espionagem ou assassinato - e faziam isso muito bem.

Segundo o meu amigo, a diferença entre o samurai, cheio de códigos de honra, e o ninja, era que se você marcasse um duelo com um samurai para o sábado às 6 da madrugada, ele estaria lá pontualmente. Já se você marcasse o duelo com um ninja para o sábado às 6 da madrugada, ele te mataria enquanto você dormisse, na quinta à noite.

Olha a malícia aí...