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segunda-feira, 3 de setembro de 2012

Muitas águas de beber

Dê uma reparada nesse vídeo:



Grandes imagens, grande áudio! Mas o vídeo em si já começa com uma bela pisada no tomate, na minha opinião: a de que a capoeira foi criada pelos índios no Brasil. 

Não há dúvida alguma, para mim, das raízes africanas da capoeira - mas o assunto "origem da capoeira", como um todo, já me cansou um bocadinho (no meu caso, já estou há 10-15 anos na mesma tecla :-)... 

Não consigo entender qual é o rationale, qual o motivo real de se acreditar que a capoeira tenha origem em  UMA luta, vinda de UM povo. Ela não é uma criatura de carne e osso, que tenha um pai e uma mãe. A capoeira nasceu de um caldeirão de culturas - esmagadoramente, culturas negras, e minoritariamente, culturas brancas e indígenas - mas não acredito que seja possível apontar A ORIGEM VERDADEIRA.

A capoeira não é um construto pronto, mesmo em dias atuais... Ela está em construção constante. O ritual não é igual ao que era 50, 100, 150 anos atrás - e engana-se quem achar que era. O modo de pensar não era igual, o modo de se movimentar não era igual. E perceba que eu mencionei um período de tempo "curto"... Imagine-se então o que eram algumas das lutas que originaram a capoeira, em tempos pré-escravidão - 500, 1000, 1500 anos atrás.

Pensando num argumento mínimo: pela quantidade de etnias negras trazidas e misturadas à força aqui no Brasil, seria humanamente impossível manter qualquer tradição imutável. Toda tradição oral é viva, e muda quando mudam os que a mantém viva. Não há tradição oral estática - todas refletem sinais de seus tempos.

O seu mestre não faz tudo igual ao que o mestre dele fazia, é fisicamente impossível. A termodinâmica garante que a transmissão de energia entre dois pontos sempre acarreta perda: a energia elétrica, ao ir para a lâmpada, não gera apenas luz - também gera calor. A sua energia, ao pedalar uma bicicleta, não gera apenas o movimento - também aquece as correntes, faz barulho, range. Não existem sistemas de energia "fechados", que uma vez abastecidos, nunca mais precisem de combustível.

É claro que trazer conceitos físicos para dentro do campo da mente humana é sempre perigoso, mas me  arrisco a defender a posição nesse caso. Nenhum ser humano é uma ilha, todos estamos expostos a opiniões diariamente, e algumas dessas opiniões mudam a nossa cabeça. Não é que fulano despreza o que o mestre dele ensinou: ele é uma pessoa com gostos e direitos, e no gosto e direito dele, vai ajeitar um pouquinho aquilo que aprendeu - para que goste ainda mais.

Por esse motivo é que os uniformes mudam de uma geração para outra; as baterias mudam de formato; os grupos ficam mais ou menos agressivos; as letras se alteram; os golpes mudam de nome; alguns golpes deixam de ser praticados (Você sabe o que é um bochecho ? E um baú ? E uma pantana ? E se sabe, tem certeza que faz igualzinho ao que se fazia em 1920 ?).

Entendo que a beleza da capoeira está justamente nessa falta de definições - é diferente de artes marciais orientais cuja forma e filosofia estão descritas em pergaminhos com centenas ou milhares de anos de idade. A capoeira é mais nebulosa, mais difusa, dá mais lugar ao praticante pensar e definir ele mesmo a arte. Temos sim luminares, capoeiristas cujo pensamento e ações formaram e formam gerações - Pastinha, Noronha, Cobrinha Verde, Waldemar, Bimba, Canjiquinha, e tantos outros. Mas no meu modo de ver, eles não deixaram regras rígidas: cada um deixou o "seu jeito certo", e se em algum momento discriminou o jeito do outro, não deveria ser julgado por isso - cada um era produto de seu tempo, e suas palavras faziam sentido naquele contexto.

Nós que chegamos agora, os mais novos, temos o privilégio de poder beber a água de muitas fontes, e desenhar nosso caminho baseando-nos naquilo que nos agradar, do que cada um dos "monstros" deixou.

Embora não esteja ligada diretamente à capoeira, eu gosto muito de uma frase de Lee Jun Fan, também conhecido como Bruce Lee. Tendo fundado um estilo, o jeet kune do, Bruce Lee parece paradoxal ao afirmar que sua arte não tem forma. O jeet kune do, por definição, não tem um jeito certo de se fazer.

"Se as pessoas disserem que o jeet kune do é diferente disso ou daquilo, então deixe o nome jeet kune do ser apagado, pois é isso que ele é, apenas um nome. Não se preocupe com ele."

Pode soar zen demais, mas é algo que eu percebo, mesmo implicitamente, na capoeira. A expressão física da capoeira importa muito menos, para mim, do que o estado mental. O desejo do capoeirista, ao jogar, me encanta mais que o jogo em si... Perceba que não quero dizer que cabe tudo ou que vale tudo na capoeira, e sim que cabe tudo e vale tudo o que for feito com respeito ao próximo, à sua integridade física e moral.

A capoeira com amor, faz amigos. A capoeira, sem amor, nem capoeira é...

domingo, 2 de setembro de 2012

Ainda a capoeira olímpica

Algum tempo atrás, escrevi um pouco sobre o que eu achava da capoeira olímpica. Ontem à noite, chegou até mim, pelo Facebook, o texto abaixo (escrito pelo Mestre Cobra Mansa):

ENCERRAMENTO DAS OLIMPÍADAS: QUE CAPOEIRA É ESSA? 


Assisti ao final das Olimpíadas em Londres. O Brasil, como sempre, apesar de não ter conquistado grandes medalhas, fez bonito. O encerramento em Londres, como de costume, foi cheio de pompas e fogos de artifício. O Brasil, país que vai sediar as próximas Olimpíadas em 2016, fez sua apresentação cultural. O samba foi destaque, com o gari Sorriso apresentando o Brasil de uma forma simples e bonita. Mas fiquei chocado quando, logo no início, depois da batucada, vi uma apresentação das mulatas brasileiras, com perucas e máscaras negras. Uma caricatura grotesca dos anos anos 50 em que era comum brancos com o rosto pintado de negro (os black faces) e até mesmo negros representarem um papel estereotipado, em que pulavam e imitavam macacos e animais para uma plateia branca, que esperava deles exatamente esse tipo de comportamento e estereótipo. Naquela época, em que o negro precisava de um espaço na TV e no teatro, era comum esse tipo de comportamento e até compreensível. Agora que estamos em 2012, depois de tantas lutas do movimento negro no Brasil e no mundo em prol de uma melhor imagem de nós negros, fiquei pasmado em ter que assistir tudo isso de novo!

Apesar do desconforto, continuei assistindo o encerramento quando tive uma decepção ainda maior: a apresentação da capoeira para o mundo! Começou com um grupo de acrobatas mal treinados, com o corpo todo cheio de óleo e um abadá branco, fazendo piruetas. Sem berimbau, sem canto, sem ginga, sem nada! Fiquei refletindo: que capoeira é essa que estamos apresentando para o mundo?! Aquilo mais parecia um circo com acrobacia para envergonhar qualquer atleta de ginástica olímpica. Acredito que os mesmos deveriam estar rindo ou chorando de vergonha. O que vimos foi um grupo de acrobatas mal treinados. Senti falta do nosso berimbau, o grande símbolo da capoeira. Na verdade, senti falta da capoeira! Não tiveram jogos de capoeira, somente acrobacias individuais. Será que a capoeira se tornou isso, uma apresentação acrobática sem ginga e sem berimbau? Foi triste, diante do preço tão alto que pagamos para conseguir chegar até lá. Valeu a pena ou aquilo foi só uma coisa “para inglês ver”? Acredito que para algumas pessoas talvez tenha sido a realização de um sonho se apresentar em uma final de Olimpíadas. Mas aonde está a nossa capoeira, essência, existência e alma? Como seria a capoeira nas Olimpíadas no Brasil? Estamos perdendo a nossa identidade, nossas raízes, tratando a capoeira como um produto rotulado, embalado e coreografado, “para inglês ver”. Nesse caminho, não importa mais sua historia ou trajetória, a capoeira está perdendo a sua alma dentro da trajetória esportiva. Fico apreensivo pelo futuro da capoeira nas Olimpíadas de 2016!

Belas palavras, e também muito propositadas. Mas sinceramente, não vejo o porquê da surpresa... Algum capoeirista ainda tem dúvida sobre qual é a imagem do negro, do Brasil e da capoeira, que a nossa elite tem (e quer vender) ? 

Nada contra quem gosta da capoeira acrobática, mas os que estão por cima (e por conseguinte, a mídia brasileira; e por conseguinte, a maioria da população) simplesmente ignora que a capoeira vá além de saltos. Qual capoeirista nunca foi perguntado "se sabia dar mortal", ao dizer que joga capoeira ? Isso, amigos, é apenas mais um sinal dos tempos. O que vende mais, aparece mais... Angoleiros, regionais e contemporâneos, rituais e ritmos, tudo vai para a mesma panela do esquecimento: a capoeira que se quer mostrar é a do "fortinho que sabe saltar". 

Que venham as olimpíadas de 2016. Elas virão, e irão, e alguns vão ganhar seu dinheirinho; outros vão continuar no "gueto", escondidos, subversivos como a capoeira sempre foi.

Resistência é para quem é de resistência!

Para fechar, um trechinho de "Andrea Doria", do Renato Russo.

Às vezes parecia que era só improvisar
E o mundo então seria um livro aberto,
Até chegar o dia em que tentamos ter demais,
Vendendo fácil o que não tinha preço.