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terça-feira, 28 de janeiro de 2014

Voltando para o gueto ?

O GoogleTrends é uma ferramenta bacana: resumidamente, ele mostra gráficos que indicam o quanto uma palavra é pesquisada no Google. Isso se traduz no quanto essa palavra é interessante para as pessoas mundo afora, ao longo do tempo.

Por exemplo, o GoogleTrends foi utilizado para se detectar possíveis epidemias de gripe ou de dengue. Ao cruzar as pesquisas feitas no Google por "dengue" com a informação geográfica de onde as pesquisas são feitas, conseguimos desenhar mapas que mostram lugares do mundo onde as pessoas se preocupam mais com a dengue - provavelmente porque estão em risco.

Abaixo, a pesquisa no GoogleTrends sobre dengue, filtrada para o Brasil.


Mas... E onde entra a capoeira ?

Se pesquisarmos "capoeira" no GoogleTrends, o resultado é esse abaixo:



Os dados não mentem: de 2004 para cá, o interesse do mundo pela capoeira está diminuindo - ou pelo menos, as pessoas não estão pesquisando mais no Google.

Eu me lembro do início da internet no Brasil, que coincidiu mais ou menos com o meu início na capoeira (1996). O Google ainda não existia, e os mecanismos de busca eram bem ruinzinhos. Os primeiros sites sobre capoeira que me lembro de ter visto foram o do Abadá e a página web de um capoeirista chamado Escovinha - aluno do Mestre Marcelo Caveirinha.

Quando vi isso, tratei de criar uma página web para o meu grupo - treinava então com o Mestre KK Miraglia, no grupo Arte & Luta. Pouco tempo depois, por volta de 1999, o panorama da capoeira na internet explodiu - especialmente fora do Brasil. De repente, apareceram muitos websites ligados ao assunto, e o maior deles era o www.capoeira.com - no qual fiz grandes amigos dentro e fora do país.

O tempo passou, a água correu, e a capoeira se difundiu cada vez mais - ou será que não ? O que a pesquisa do GoogleTrends mostra é que a tendência a procurar por "capoeira" na internet está diminuindo.

Isso é reflexo de mais e mais pessoas querendo experiências reais ao invés de virtuais ? É reflexo das crises financeiras pelo mundo afora, que trouxeram muitos capoeiristas de volta para o Brasil nos últimos anos ?

Será que a capoeira está caminhando para se tornar "misteriosa" novamente ?

Quando aumentamos o escopo da pesquisa, vemos que o interesse pela capoeira angola também diminuiu:



Já a capoeira regional tem um interesse razoavelmente constante:



Comparando as duas simultaneamente, vemos a popularidade da angola decair com o tempo, embora ainda seja mais popular que a regional:



Já o nosso berimbau, está cada vez mais popular...



E você, o que acha ? Na sua percepção, a capoeira tem ficado menos popular com o tempo ?

segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

"E nem me despenteio!" - Madame Satã

Matéria de Paula Lacerda e Sérgio Carrara, publicada na Revista de História da Biblioteca Nacional #33 - Agosto de 2007

Entre o feminino e o masculino, a elegância e a indecência, Madame Satã ganha a Lapa e faz fama como malandro bom de briga

Nos anos de 1970, o periódio de esquerda "O Pasquim" recuperou a história de um estranho personagem da boemia carioca em duas entrevistas. O interesse do público por sua trajetória foi tamanho que em pouco tempo ele também aparecia em programas de auditório recontando suas aventuras e relembrando o passado com saudade. Quem era esse malandro ?



"Mulata do Balacoché", "Caranguejo da Praia das Virtudes" e "Jamaci, a rainha da floresta" foram alguns de seus tantos apelidos. Em suas apresentações artísticas, vestia pomposos trajes femininos, ameaçando a moral e os rígidos padrões da época. Homossexual assumido, negro, pobre e capoeirista, respondeu a mais de vinte processos, entre eles, treze por agressões, quatro por resistência à prisão, três por desacato, um por ultraje ao pudor e um por homicídio. Estamos falando de “Madame Satã”, o codinome mais famoso de João Francisco dos Santos, verdadeiro mito da malandragem carioca.

“Eu vim ao mundo junto com o século XX”. Era assim que ele anunciava o ano de seu nascimento, 1900. De infância difícil, foi negociado pela mãe em troca de uma égua quando tinha sete anos. Antes de partir com o menino, o comerciante de nome Laureano prometeu que lhe daria estudo, acordo que obviamente não foi cumprido. Em pouco tempo transformou-se em escravo, fazendo trabalhos pesados sem qualquer remuneração. 

Depois de algum tempo percorrendo cidades do sertão nordestino, João Francisco conheceu uma senhora que lhe ofereceu o mundo: trabalho e hospedagem no Rio de Janeiro! Ele aceita a proposta e parte imediatamente para a capital federal. Chegando à cidade, no ano de 1907, encontra uma rotina de trabalho não muito diferente da anterior. Na pensão, limpava, lavava, cozinhava e não recebia nada em troca, exceto modestos pratos de comida e um colchonete para deitar o corpo no fim do dia. Por isso, João fugiu e foi viver na Lapa, bairro que logo ficaria conhecido como o berço da malandragem.

Ao chegar, o menino encontrou um bairro fixado em torno de uma bela igreja – a Nossa Senhora da Lapa – e margeado por um imponente aqueduto, que em outros tempos levava água aos bairros centrais da cidade. Apesar da reforma urbana e social promovida pelo prefeito Pereira Passos (1902-1906) − que expulsou as populações mais carentes da parte central da cidade −, a Lapa permaneceu residencial, abrigando famílias de operários, malandros e prostitutas. João Francisco fez sua residência em um dos típicos sobradinhos do bairro.

Durante seus primeiros anos na cidade, ficou conhecido como brigão profissional, sujeito de muitos amigos e também de muitos desafetos. Vivia de pequenos trabalhos avulsos e não levava desaforo para casa nem de policiais. Conhecido por sambistas, prostitutas, políticos, e principalmente pela polícia, foi levado à delegacia algumas dezenas de vezes por sua “conduta anti-social”, que incluía agressões, confusões em bares e ameaças.

Por intermédio de alguns amigos influentes, João realizou um dos seus maiores sonhos: se apresentar como transformista. Dublava músicas e dançava vestindo roupas femininas. O ano era 1928, o local dos shows, a Praça Tiradentes - região conhecida por suas inúmeras casas de espetáculo. Uma vez alcançado esse sonho, o malandro muda sensivelmente sua rotina. Passa a sair dos espetáculos e ir direto para casa, evita brigas e todo tipo de confusões que pudessem atrapalhar seu trabalho artístico. Mas um incidente traz de volta a velha rotina das brigas na figura do guarda Alberto.

O transformista fora jantar em um botequim da Lapa, perto do sobradinho onde morava. Ao pedir seu tradicional bife malpassado, percebeu que o vigilante noturno Alberto, conhecido por sua truculência, estava sentado algumas mesas adiante. Ao avistar João – que nessa época usava os cabelos na altura dos ombros – o guarda, um tanto alcoolizado, imediatamente xingou o malandro.

Mesmo com suas ofensas sendo ignoradas, o guarda insistiu: “Já estamos no carnaval, veado?!”. Passados alguns segundos, percebendo que não haveria briga, Alberto decide partir para a agressão física e atinge João com um soco no rosto. Ainda assim, nosso personagem brigão vai para casa e tenta se controlar. Não consegue. Volta ao bar e atira em Alberto, que morre na hora.

João é preso pela polícia e mandado para o presídio da Ilha Grande em 1928. Mesmo tendo sido absolvido dois anos depois por ter agido em legítima defesa, a prisão marca profundamente a trajetória do malandro. Solto, ele retorna à Lapa, onde passa a fazer a segurança dos bares e cabarés das redondezas em troca de doses de bebida e alguns trocados.  O trabalho como segurança - além de completar a renda que obtinha com pequenos furtos - era também uma forma de fazer-se presente na boemia do bairro.

Seu codinome mais famoso, Madame Satã, surge somente anos depois dessa prisão. Segundo a versão mais conhecida deste episódio, foi no carnaval de 1938, quando João vence um famoso concurso de fantasias promovido pelo bloco carioca “Os caçadores de viados”. A fantasia premiada representava um morcego típico da região natal, no interior de Pernambuco. Utilizando adereços dourados e pretos, fez tanto sucesso que algum tempo depois um policial o identificou como sendo o ganhador do concurso. Sua opinião sobre a indumentária, no entanto, surpreendeu o próprio malandro. Para o policial, ele teria se inspirado no filme “Madam Satan”, do diretor norte-americano Cecil B. De Mille – filme a que João jamais assistiu. Mas o apelido agradou, e todos os codinomes anteriores foram definitivamente abandonados. O nome  “Madame Satã” parecia traduzir com precisão sua personalidade, que fundia elementos contraditórios como o feminino e o masculino, a doçura e a maldade, a elegância e a indecência. E todo malandro precisava de um apelido. Seus contemporâneos eram Meia-noite, Sete-Coroas e Beto Batuqueiro, para citar alguns que ficaram na memória da boemia.

Embora sua fama tenha começado nos anos 1920, foi só por volta de 1940 que Madame Satã passa a ser conhecido e reconhecido como o malandro mais temido da Lapa, o mais brigão, o que jamais teria se esquivado de uma briga com a polícia.  E sua trajetória tortuosa reflete as transformações dos significados da malandragem.

Bem no início do século XX, a idéia de malandro estava vinculada a um tipo de homem mulherengo, vadio, jogador e brigão. O chapéu panamá, o lenço no pescoço, o sapato cara-de-gato e principalmente a navalha compunham seu visual. Nesse momento, o malandro era alguém que perambulava por bares e cabarés, conhecia e respeitava seus pares e não fugia de brigas, onde quer que elas ocorressem – foi esse o lado que marcou Madame Satã.

Já no governo Vargas (1930-1945), percebe-se uma sensível alteração. Com a intensa valorização do trabalho e do trabalhador, a “malandragem” passa a constituir um “mau exemplo” para a população. Surge então a conotação de burla ao trabalho, que, por sua força, ainda pode ser facilmente percebida hoje em dia. Por isso, dizia Moreira da Silva (1902-2000), o criador do samba de breque: “malandro é o gato, que come peixe sem ir à praia”.

Ao longo da década de 1950, quando o samba cede lugar à bossa nova, Copacabana então substitui a Lapa como espaço de boemia e divertimento. São os anos do desenvolvimentismo: os cassinos são fechados, a era dos cabarés entra em decadência, os sobrados da Lapa representam uma estética e um modo de vida ultrapassados. Com todas estas inovações, a figura de Satã também entra em declínio, e o incidente que culminou na morte do sambista Geraldo Pereira marca o começo de seu fim.

A briga com Geraldo seguiu os mesmos moldes daquela que levou o guarda Alberto à morte: ambas ocorreram na Lapa, durante a noite, com a presença marcante do álcool, e começaram com uma ofensa a Satã –, novamente dirigida à sua sexualidade. Fazendo jus à sua fama de brigão, o chamado “Geraldo das Mulheres” declarou, no restaurante A Capela, que adorava “dar porrada em bicha”. Com isso, Madame Satã partiu para cima de Geraldo e o atingiu com um soco de direita – foi o suficiente para que o sambista não recuperasse os sentidos e falecesse minutos depois.

É claro que este episódio contribuiu para aumentar ainda mais a fama de malandro valente. Madame Satã não foi oficialmente acusado de homicídio por causa de um laudo médico que atribuiu a morte de Geraldo a um derrame cerebral. No entanto, a partir deste incidente Madame Satã ficou cada vez mais exposto aos olhos da lei. Não por acaso, nesse mesmo ano sua trajetória na malandragem foi bruscamente interrompida.

Acusado de aplicar o “suadouro” – golpe da época que consistia em roubar os pertences de rapazes enquanto eles se distraíam com alguma prostituta –, Madame Satã retorna ao presídio da Ilha Grande. Desta vez sua estada é mais prolongada, e ele fica preso por mais de dez anos. Em 1965, Satã recupera a liberdade e segue para a Lapa. No entanto, seus comparsas haviam morrido e a malandragem, tal como ele a havia conhecido, não existia mais. O jeito foi voltar para a Ilha Grande, onde passou a criar galinhas, pescar e cozinhar para alguns amigos. 


Procurado pelo Pasquim e depois pela TV, Satã ora recusava a autoria de muitos dos crimes que lhe foram atribuídos, ora criava histórias ainda mais fantásticas sobre “sua pessoa”, como ele mesmo gostava de dizer. A trajetória do boêmio mais famoso do país acabou interrompida definitivamente por um câncer pulmonar em abril de 1976. Morreu em um hospital público, ao lado de uma de suas filhas adotivas.

A recente produção cinematográfica “Madame Satã” (de Karim Aïnouz, 2002) retomou a importância desta personalidade curiosa e conta parte de sua história. Hoje, a presença de Madame Satã é atestada em muitos artigos de jornais, na Internet, e até mesmo por acadêmicos que se debruçam sobre a malandragem ou sobre o bairro da Lapa. Das mais diferentes formas, as histórias do bairro e as do personagem se misturam, e um ajuda a manter o outro vivo na memória carioca.


PAULA LACERDA ATUA NO CENTRO LATINO-AMERICANO EM SEXUALIDADE E DIREITOS HUMANOS E É AUTORA DA DISSERTAÇÃO “O DRAMA ENCENADO: ASSASSINATOS DE GAYS E TRAVESTIS NA IMPRENSA CARIOCA” (UERJ,2006).

SÉRGIO CARRARA É PROFESSOR DO INSTITUTO DE MEDICINA SOCIAL DA UERJ.

segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

“Eu sou aventureiro, sou andarilho, gosto de andar pelo mundo” (Mestre João Grande)

“Eu sou a fruta madura 
que cai do pé lentamente 
Na queda larga a semente 
Procura uma terra fresca 
pra ser fruta novamente”. 
(Bule-Bule) 

Foi em 1990. Cheguei aqui neste ano e fiquei. Eu gostei daqui pelo seguinte, Deus meu senhor que me trouxe para aqui, me botou aqui. A capoeira está crescendo aqui porque antigamente não conheciam o que era a capoeira. Mestre Pastinha dizia: “Quem não conhece a capoeira não sabe dar o valor que ela tem”. Não sabiam que era assim a capoeira. Agora o pessoal está conhecendo o que é a capoeira verdadeira, aí pronto. A capoeira verdadeira é uma coisa boa que o senhor faz. Mas tudo direito, com respeito para ver que aquilo é bom e não negócio de bandalheira, de cachaçada, de coisa errada no meio. Gosto de tudo certinho. Isso é capoeira verdadeira. Gosto de fazer capoeira como meu mestre ensinou, eu faço tudo aqui como meu mestre me ensinou. Não faço nada errado, tudo que eu faço aqui é do meu mestre, e tem muita coisa aqui criada por mim. Criei muitos movimentos aqui, difíceis. Meu trabalho na capoeira é diferente de todos os mestres, desde o Brasil que é assim. Já estava desenvolvido com três anos fazendo capoeira, eu treinava para fazer diferente de todo mundo. O jogo lá em Mestre Pastinha era diferente do daqui. Lá a gente treinava tocando berimbau e fazendo o movimento. Eu que criei aqui essa coisa de ir e voltar, de colocar os alunos em dupla pra fazer movimento.

Porque tem muita gente aqui e se fizer em roda vai demorar muito pra todo mundo jogar. Eu faço os movimentos para usar na roda. Porque todos os movimentos que eu faço aqui é pra mostrar quando tiver jogando com outra pessoa. Muitos esquecem. Academia entra aluno todo dia aqui. Entra, faz aula, vai embora, volta de novo. Tudo em português. Eu que ensino capoeira a eles, ensino a falar português também. Nunca precisou falar inglês aqui. Risadinha mesmo, é inglesa, não falava nada de português, aprendeu a falar aqui comigo. “Mestre, isso está bom ?”. Não, a palavra é assim, assim e pronto. Falar português limpo. Um, dois, três. A pessoa não sabe tocar eu ensino. Movimento, não sabe fazer eu ensino. Vem japonesa aqui, toda parte do mundo. Toda parte do mundo vem aqui. Vem japonês aqui que não fala nem inglês, nem português. Passa dois meses aqui, sai fazendo tudo. Sai fazendo berimbau, fazendo caxixi, sabe o nome dos instrumentos, sai fazendo os movimentos. Ainda fala um pouquinho de português. Não pode ensinar tudo de uma vez. Aos pouquinhos.

Quer dizer, um aluno é igual botar uma criança para andar. Botar uma criança para andar é o seguinte: pega uma criança devagarinho com ela, devagarinho, devagarinho, até saber botar o pé o no chão devagar, andar, andar. Aí você manda ela sentar, ela senta. Levanta, vem aqui de novo. É assim, devagarinho. É assim que se ensina um aluno, igual a uma criança. Porque tem o movimento base. O movimento base é a ginga, negativa, rolê. Ginga, sapinho, chapa. Sapinho, chapa, rolê. Ginga, passagem de perna. Ginga, corta capim, passagem de perna. Todos tem movimento de rolê. Corta capim, rolê. Tem os movimento assim. Tem que pegar base. Depois que pegar base no chão, aí vamos para o aú, negativa. Aú, negativa, rolê. Aí sai do aú, rolê. Aí vem meia lua de frente, outra meia lua de frente, agora meia lua de costas.

Depois de fazer tudo isso, eu testo ele, o que é a ginga, o que é a negativa, o que é o sapinho, o que é passagem de perna, o que é rolê? Depois de saber de tudo, aí vai para o rabo de arraia. Aí vai crescendo. Aqui tem cabaça, tem verga, tem arame, tem material de fazer caxixi, tudo tem aqui. Eu faço e ensino os alunos a fazer. Tem poucos alunos brasileiros. Se tiver uns dez têm muito. Gosto muito de Nova York. Adoro aqui... Tudo. De tudo eu gosto daqui... Eu conheço poucos brasileiros aqui. Mas os que eu conheço estão todos bem, todos vem aqui. Dança de domingo aqui fica cheio de capoeiristas de todo lugar. Tudo vem para aqui jogar capoeira. Porque nós temos que tratar bem o nosso país. Se eu estou aqui, tenho que tratar bem quem vem de lá para cá. Qualquer país vindo para cá a gente trata ele bem aqui. Seja brasileiro, seja africano, de qualquer país tem que tratar bem, nós somos irmãos. A capoeira cresceu porque é boa para a saúde.

Mestre Pastinha disse: “a capoeira Angola é para ser semeada no mundo todo”. Portanto eu estou criando no mundo todo. Triste, o negócio foi triste. Muito difícil. Aqui pertinho, coisa horrível. Quando caíram as torres lá eu estava aqui dando aula, terça-feira tinha aula aqui, telefonaram para mim, aí quando eu liguei a televisão o outro prédio estava incendiando, um já tinha caído. Coisa triste. Matou muita gente, abalou o mundo todo. Tragédia feia. Capoeira é pra paz. A roda que eu vou hoje teve briga não vou mais. Pancadaria não presta. Você tem sua roda chega e vem um pessoal de fora pra quebrar com sua roda. Tá errado. Falta de respeito. Um jogo de pancadaria num lugar ninguém fica olhando. Jogo bonito, quer ver jogo bonito, pessoal quer ver isso, não quer ver pancadaria. Quer pancadaria vai pro cinema ver Kung Fu. Os jovens capoeiristas tem que seguir a capoeira como uma dança, não como luta, e se unir uns com os outros, para crescer a capoeira do Brasil, seja capoeira regional ou Angola.

Crescer porque se você sair da linha, não fizer aquilo com seu coração limpo, a capoeira nunca cresce. Briga nunca cresce na capoeira. Nada com briga cresce. Lugar que não tem respeito nenhum não tem progresso. É ou não é? Não tem progresso. Pra capoeira crescer... Em qualquer lugar desse de capoeira que tem pancadaria...ninguém vai lá. Vai lá olhar, depois não volta mais não. Se você tiver sua filha você não vai botar lá pra aprender, pra ver sua filha apanhar. Pagar dinheiro pra botar seu filho na capoeira ali pra ver seu filho apanhar. Isto é falta de respeito. Falta de respeito. Pagou pra treinar, não bater. Se a pessoa faz qualquer coisa errada, chama atenção e diz tá errado. Tem que fazer assim, assim, assim. Aqui ninguém bate em ninguém. Mestre Pastinha não gostava de violência. Ninguém bate em ninguém, tudo aqui de roupa branca. Ensino é assim. Não aprende apanhando. Ninguém gosta de apanhar não. Eu cuido da Academia. Agora, esse negócio de papel de banco é Risadinha que toma conta. Moro na 66. Na casa dela. No apartamento dela. Ela é casada e tem um filhinho, Lázaro, que é meu afilhado. Deus mandou ela do céu para mim. Deus e meus Orixás mandaram ela para mim, para me ajudar aqui.

Risadinha. Ela que me ajuda aqui e lutou por mim. É inglesa, mas mora aqui há vinte anos. Ela é aluna daqui, trabalhou aqui, pagou um advogado, tirou meus documentos, tirou tudo. Tirou meu cartão verde. Durmo na casa de Risadinha e venho para aqui. Ela me ajudou a correr com o papel, Green Card. Correu. Me deu um diploma lá onde ela trabalha, enviou uma carta para o diretor para me dar o doutorado. Me deu o doutorado, me deu uma coisa, me deu outra coisa. Tudo isto ela que me ajuda. Ela fez uma aplicação também. O negócio que o governo me deu. O presidente me deu uma homenagem, uma placa. Demorou um ano e pouco. Foi iniciar em 2002. Eu tava lá no médico. Ela telefonou. Queria falar comigo. Nana que atendeu. Disse que daqui a uma hora o homem do governo queria falar comigo. Veio Jurandir, veio João Pequeno, veio Moraes, duas filhas minhas... Eu paguei as passagens e tudo, mas deram o passe para poder entrar. Risadinha chamou. Convidei Moraes, João Pequeno, Jurandir, minhas duas filhas, Gildo Alfinete e Frede Abreu, que são gente boa. Quem cobra os alunos da academia é quem está na porta. Eu dou o dinheiro para Risadinha. Ela paga taxa, paga o governo, paga tudo, eu gosto de tudo certo. Não gosto nada de ficar esse negócio de escondidinho, não. Negócio é tudo aberto. Não gosto de enrolação. Gosto de tudo certo. Risadinha não é minha sócia, não. Ela me ajuda. Ela tem o trabalho dela, é professora de vídeo. O marido dela é mecânico de computador. Ela paga tudo, taxa do governo, paga tudo, tudo, tudo, tudo. Sobra um dinheirinho para pagar a casa aqui. Aqui é pago. Tem que pagar tudo aqui. Sobra pouquinho. Dinheiro pouco. Antigamente quando tava tudo barato...mas agora tá tudo caro.

Tudo que eu ganho aqui é pra pagar a casa e pagar as contas, eu não saio pra passear, pra gastar dinheiro. Comida eu como aqui mesmo, não como em rua porque não gosto de comida de rua. Não como sal. Levo uma vida simples, passo o tempo todo na academia, só às vezes que saio. Vem gente aqui todo dia visitar. Às vezes têm três, quatro pessoas de fora aqui. O telefone toca, tenho que atender. Tem o pessoal da dança, da outra sala. É pouquinho, mas pouco com Deus é muito. Tudo aqui é muito caro. E aqui em Manhattan tudo é mais caro que em qualquer outro lugar. Aqui é caro, caríssimo. Pago cinco mil dólares de aluguel, fora o dinheiro de imposto, de acidente, fora o governo, fora luz e água. Muito caro.

A academia quando tem muito aluno vale mais. Viagem a pessoa se cansa. Às vezes ganha, às vezes não ganha. Um lugar que você vai viajar que é muita coisa, vende tudo, é o Japão. Quando viajo pro Japão levo a mala cheia de vídeo, camisa, vende tudo lá. Na Europa vende pouquinho. Eu tenho grupo em Belgrado, em Los Angeles, na Itália, tem também em Hamburgo, na Suécia, no Japão... Dou aula pro pessoal lá, passo uma semana lá. Pessoal da Europa gosta muito de capoeira Angola. Gente de trinta anos de capoeira regional está indo pra capoeira Angola. Diz que se cansou de fazer capoeira regional, foi pra capoeira Angola. Viajo acompanhado. Me dá tanto. Só vou por três mil dólares. Muito caro aqui.

Não posso ir por mil dólares porque senão perde muito dinheiro. Se eu saio daqui por mil dólares não tem aluno aqui, aluno só vem quando eu estou aqui. Três mil dólares. É! Hospedagem e tudo. Levei Sara uma vez. Levei Papagaio, levei Raquel, levei Cabeça Pelada, levei Paciência, levei Nana, baiana, para Europa. Pro Brasil ano passado levei Raquel. Vai quem tá desocupado. Quem pode viajar comigo? “Eu posso”. Todo mundo aqui trabalha. Você quer viajar comigo, passar uma semana? “Tudo bem”. Outros não podem, estudam, trabalham. Uns trabalham, outros estudam. A maioria trabalha e estuda. Tem dois doutor aqui. Todo mundo aqui me ajuda, graças a deus. Aqui não tem negócio de racista não. Aqui na academia não tem. Tudo aqui é zebra. Branco e preto. Tudo aqui é igual. Aqui é uma família. O pessoal gosta porque é uma cultura da África. O pessoal quer saber. Veio da África quer saber. Mais do que no Brasil. No Brasil não dá muito valor, não dá apoio por lá. Aqui dá muito valor.

Eu Nasci em Itagi, interior da Bahia. Eu trabalhava na roça em Itagi. Eu trabalhava com meu pai na lavoura. E lá, as vezes, eu ia para o mato e ficava observando os bichos. Não sabia o que era capoeira, capoeira para mim era mato. Ia para ver os bichos andarem no mato. Os pássaros voando não batiam nos outros, desviavam. Ia para o rio jogar farinha e ver como os peixes nadavam, os peixes não batiam nos outros. Aquilo na minha mente despertava esse assunto, como eles não batem um no outro ? Eu tinha dez anos de idade. Depois eu vim para Itagi, para a cidade. Eu trabalhava na roça, depois vim para a cidade. Um dia de semana eu tava sentado na porta de uma venda com dois senhores, um de nome Pedro outro Chico. Passaram dois meninos de dezoito anos, um fez um corta- capim. Enfiou as pernas assim. Os dois senhores comentaram. Pedro disse pra Chico: “Chico, isso aqui é dança de nego nagô. Passando na pessoa a pessoa cai”.

Não podia conversar com ele que ele falava para meu pai e meu pai batia na gente. Dois adultos conversando assim, o menino pequeno não ficava junto não. Ficava de longe. Se passasse e chegava batendo na gente. Foi quando um saiu, o que falou ficou, o outro saiu. Ai eu cheguei e perguntei: Como e que é, Seu Chico, o que é dança de nego nagô ? O que é corta capim? Ele disse assim: “Aquilo ali é dança de nego nagô”. O que é dança nagô? “Dança nagô é esse pessoal que vem da África, esse pessoal é africano e se chama Nagô. Eles fazem esses movimentos, essa dança”. Eu disse: onde é que se aprende isso? Ele disse: “Não sei. O pessoal trabalha no engenho de cana, trabalha no canavial, cortando cana, no alambique”.

E o que é corta-capim? Nego pegou o facão e disse: “É isso aqui”. Eu tinha dez anos de idade. Capoeira é o seguinte: capoeira é uma dança, uma arte, uma profissão, uma cultura. Agora, naquela dança ali, se ele tiver coagido ele tem que reagir com luta. É uma dança, mas na hora que está precisando é uma luta. Veio como dança de N’golo para o Brasil. Capoeira é africana desenvolvida no Brasil. Os africanos trouxeram ela para cá, mas não trouxeram como capoeira, trouxeram como dança que desenvolveu no Brasil, no mato ralo, o mato ralo chama capoeira. Capoeira é irmão do candomblé.

Muitos mestres não querem acreditar. Tudo que vem da África é irmão do outro. O africano que trouxe para o Brasil. O candomblé, o samba, a capoeira são irmãos. É irmão, tudo veio da África. Candomblé, samba, maculelê, capoeira, tudo é irmão. Tudo veio da África. A capoeira chegou no Brasil como dança de N’golo. Capoeira é uma dança, vamos dançar. Capoeira é mandinga, antigamente chamavam de mandinga, falavam assim: “Cadê a mandinga, onde é a brincadeira, vamos praticar aonde, vamos vadiar aonde?”. Aqui no Brasil cresceu mais. Os mestres cresceram e foram passando para os alunos. A capoeira que eu faço é natureza. Não copio nada dos outros pra fazer capoeira.

Deus e meus orixás que me dão sabedoria pra fazer aquilo que eu faço. Crio na hora. Peão de cabeça, criado por mim, relógio, criado por mim, balão com uma mão só, tudo criado por mim. Uso tudo que meu mestre me ensinou e multiplico mais. O que meu mestre passou eu peguei tudo e fui crescendo. O Rio Amazonas fica num lugar somente? Recebe uma coisa de um e outro e num cresce aquele mundão todo? É como assim a vida da capoeira. Você agora tá aprendendo devagarinho, quando você tiver bem você vai olhar a cultura, olha o que estou dizendo, você vai pro mato olhar no mato assim, ver fazer um movimento no mato, você faz o movimento também.

Vê um bicho fazendo um movimento você faz um movimento também. Vê um peixe fazendo um movimento você faz o movimento daquele peixe. O peixe vai lá e volta, não volta? A cobra vai lá e não volta em cima pra pegar a pessoa? Tudo daqueles movimentos vai crescendo dentro daquele só. A cobra nasce pequenininha, daquilo ali a mãe não ensina nada, ela vai e faz pela peneira dela. A natureza que dá pra pessoa. A natureza. O rio vai aqui e volta, segue nesta direção. Não vai direto porque não tem lugar pra passar. Tem uma montanha aqui o rio não vai subir reto porque não tem onde passar, procura lugar pra entrar, pra passar. Tem uma formiga no rio num lugar onde não pode passar, ela procura, procura até achar um lugar pra poder sair.

Que nem você também. Jogando capoeira você tem a sua capoeira que seu mestre te ensinou e você vai crescendo outra coisa aqui no seu corpo. O que seu corpo pedir você dá a ele. Corpo pede aqui. É isso, vou fazer isso. Você faz um movimento aqui, seu corpo quer aquele movimento seguido. Você faz um corta-capim. Eu estou dizendo a você, você faz um corta-capim, faz essa experiência. Faz um corta-capim e demonstra uma cabeçada, corta-capim você mostra um rabo-de-arraia, corta-capim você mostra uma chapa de frente, corta-capim você mostra uma chapa de costas, corta-capim você mostra uma meia-lua, corta-capim você mostra um aú e volta com uma chapa de costas, corta-capim você mostra um aú e volta pra tesoura, corta-capim você volta com um aú, corta-capim e volta com uma cabeçada, corta-capim. Tudo isso você vai fazer.

Eu saí andando, andando, andando... Sem destino. Cheguei na Bahia com vinte anos. Num dia de tarde estava sentado na porta da igreja de Nossa Senhora, chegou uma família de Bicuí, seis hora da tarde. Um casal e veio um homem também com eles, tinham três burros. Ele parou na minha frente na igreja e falou: “Você quer ir embora para Bahia?”. Ele nunca tinha me visto. Bahia, onde é? “É longe, você vai gostar. Quer ir?”. Eu vou. Estava com 19 anos. Falei com minha irmã. Vou embora pra Bahia. “Não, não vai não, você não conhece esse pessoal, não conhece ninguém”. Eu vou. Arrumei um saco de pimenta, botei minha roupinha ali. Minha mãe tinha morrido e meu pai trabalhava no interior.

Eu ficava na cidade, trabalhava na cidade. Trabalhava com tropa de burro, viajava de Itagi a Jequié, Rio Novo, carregando mercadoria. Saímos de manhã e fomos até Rio Branco, lá pegamos uma Marinete. A gente chamava de Marinete o ônibus que ia para Rio Novo. A bagagem ia em cima. Uma Marinete toda acabada. Passamos um mês em Ilhéus, em Rio Novo. Do Rio Novo falaram: “Vamos para Bahia agora”. A família tinha parentes em Rio Novo. Pegamos o trem para São Roque, em Jequié mesmo. Nunca tinha viajado de trem. Nunca tinha visto o mar. Chegamos em São Roque era seis horas da noite. Pegamos o navio em São Roque para chegar a Salvador. Saltei na Bahia, no Mercado Modelo, e fui morar no bairro do Tororó, número 19. Tem a casa lá até hoje. Trabalhava de graxeiro em casa de família. Sabe o que é graxeiro? Lavava prato, varria a casa, fazia mandado.

Não me davam nada, só a comida e a roupa. A mesma família que me levou para Bahia. O homem era mascate, comprava coisas nas lojas e vendia nas festas do interior. Vendia relógio, jóias, brincos, vendia no interior, nas festas. Ele se chamava Edgar e a mulher era Júlia. Ele passava dois meses viajando pelo interior todo. Ia para as festas, ficava lá. Depois vinha de novo. Tinha um senhor numa casa. Um espanhol chamado Moreira. Ele tinha uma venda. Conversando comigo ele disse assim: “Vem cá, você é da onde?”. Sou de Itagi. Interior da Bahia. “Você mora aí? Ganha quanto?”. Ganho nada não, só me dão roupa e comida. “Quer trabalhar comigo?”.

De quê? “É pra trabalhar no depósito de cachaça lá embaixo, Depósito Vasco da Gama. Eu dou um quartinho para você morar aqui no fundo e dou cinqüenta mil réis por semana”. Tá bom. Aí saí da casa deles, foi uma peia danada. Aí comecei. Tirei carteira de trabalho. Quando acabou o depósito de cachaça fui trabalhar com construção civil, na Delta. Depois trabalhei direto com construção civil, trabalhei aqui, trabalhei acolá... já tinha descoberto a capoeira. Eu cheguei em Salvador em 1953, foi quando eu descobri a capoeira. Já tinha completado 20 anos. Aí cheguei lá embaixo e encontrei a capoeira. Um dia de domingo tava lá no Tororó e depois eu desci. Lá embaixo era a Roça do Lobo, um bairro onde só tinha pobre morando lá, pobre mesmo. Eu cheguei e de cá de cima eu vi uma rodinha.

Quando eu desci encontrei lá uma roda e três pauzinho balançando, mas eu não sabia o que era capoeira. Eu perguntei assim pro finado Mestre Barbosa: Meu sinhô, o que é isso? “É capoeira”. Antes disso eu vi um corta-capim em Itagi. Quando eu tinha dez anos de idade um cara fez um corta-capim. Sempre que eu queria saber do corta-capim ninguém sabia informar. Depois que eu cheguei na Bahia com vinte anos, passei um ano e depois eu cheguei lá embaixo e vi a rodinha na Roça do Lobo. Desci, fui lá e perguntei: “É capoeira”. Na hora um cara fez o corta-capim. Pensei: Ah, é o que o senhor me disse que era dança de nego nagô. Onde é que aprende?

Ele disse assim: “Lá em Brotas, com Mestre Pastinha”. E como é que eu chego? “Fala com o João que ele leva você lá”. Outra hora eu falei com ele. “Você me espera aqui uma hora que eu passo e pego você pra gente ir lá em Brotas”. Em 1950 tinha bonde. Ele me levou lá pro finzinho de Brotas, no Candeal Pequeno. Me levou na casa de Mestre Pastinha. Tinha uma salinha pequenininha. Pastinha tava lá já sentado. Tinha um outro senhor lá sentado. João falou: “Pastinha, esse rapaz quer aprender capoeira aqui”. “O que você faz”? Eu pratico luta livre, gosto de futebol. “Larga tudo isto que isto não presta. Segue a capoeira que você vai crescer na capoeira, porque a capoeira é a mãe de todas as lutas e todas as danças”. Eu fiquei sentado num banco. E foi chegando gente, chegando gente...

Eu pensei assim: Esse senhor sabe nada. Não levei a fé. Quando a roda começou ele foi jogar com Daniel Noronha, eu vi os ticun, eu digo: Ah, ele sabe. “Você vem treinar aqui terça-feira”. Terça-feira me deu um treino. Na quinta-feira fui de novo lá, ele me deu outro treino. Terça e quinta, terça e quinta... Depois João Pequeno treinou também comigo... Depois mudamos pro Pelourinho, 19. Começou aula direto lá. Em Brotas era um lugar para treinar...uma academia não, era um espaçozinho. Não era a casa dele não. Ele morava na Cidade de Palha. Toda semana eu ia para lá treinar. Treinando, treinando, treinando... trabalhava o dia todo e de tarde treinava, quando não fazia hora extra de noite na construção civil ia para lá treinar. Treinei um ano na academia dele sem sair para lugar nenhum.

Depois de um ano, em 1954, fui ver a festa de Bom Jesus dos Navegantes, na Boa Viagem. Lá no Monte Serrat tem um forte, a roda rolava lá em cima. Eu fui lá. Enquanto o pessoal chegava a roda estava rolando lá em cima. Eu fui lá e encontrei Boca Rica, Mestre Canjiquinha também. A roda tava rolando e ele me chamou para dar uma volta. Eu todo acanhado sem saber nada. Com medo. Nunca joguei na rua. Joguei com ele. Depois perdi o medo. Todos os mestres me ensinaram. Cobrinha Verde me ensinou. Mas meu mestre mesmo foi Pastinha. Meu mestre verdadeiro foi mestre Pastinha. Ele me deu em palavra meu respeito como mestre. Valdemar me deu em palavra. Livino me deu em palavra.

Daniel Noronha me deu em palavra. Cobrinha Verde me deu em jogo. Cobrinha Verde foi contra-mestre de Pastinha. Mestre Pastinha é meu pai, meu mestre e meu avô de capoeira. Com as forças de Deus, por tudo que tem de bom. Com ele e Cobrinha Verde e os outros antigos. Eu considero eles como mestres. Aí pronto, venho direto, jogando capoeira direto. Mestre Pastinha me dava muito coisa. Ficava na academia com ele batendo papo, conversando. Ele dizia faça isso, isso, isso... Me dava muita coisa. Treinei muito com Mestre Pastinha e Cobrinha Verde. Valdemar joguei com ele uma vez quando tava já bem doente numa festa em Itapuã. Eu joguei com ele. Ele entrou, jogou e saiu logo. Destes antigos que eu joguei muito foi com Mestre Pastinha, Cobrinha Verde e Espinho Remoso.

O pai de Vírgilio e Diogo. Tinha roda lá na Jaqueira do Retiro. Tinha esse nome porque tinha um pé de jaca, o pessoal jogava debaixo do pé de jaca. Livino, Onça Preta, Noronha, tomava muito conselho deles, eu tenho esses moços como mestre. Meu mestre mesmo é Mestre Pastinha. Ele e Cobrinha Verde que considero meus mestres mesmo, me deram muita coisa. Os outros me deram em palavra, e eu considero eles mestres também. Treinei muito com Cobrinha Verde. Morava na casa de Cobrinha Verde, lá no Chame-chame. No fundo de quintal, com candeeiro aceso, treinava eu, Bom Cabrito, em vida, treinava Gato, em vida. Uns quatro ou cinco treinavam de noite na casa de Cobrinha Verde, no fundo de quintal.

E domingo de manhã Cobrinha Verde fazia a roda dele e de tarde íamos para academia de Mestre Pastinha. Jogava no fundo de quintal de Cobrinha Verde ou na rua. Cobrinha Verde treinou com Besouro e com um africano chamado Tio Olímpio. Ele era discípulo de Besouro, irmão de leite de Besouro e primo carnal. Era irmão porque mamou leite no peito da mãe de Besouro. Não conheci ele, mas diziam que era Besouro Cordão de Ouro porque usava um cordão de ouro grande no pescoço. Besouro Mangangá é porque prenderam ele, que se transformou num besouro e saiu a voar, fugiu da cadeia. O carcereiro não viu ele sair, só ouviu o zum, zum, zum... Aí que ficou o nome de Besouro.

Ele tinha muita oração forte. Mangangá é um besouro muito perigoso. Fica num toco de madeira e se descarrega em qualquer pessoa. Quando eu cheguei a Salvador e entrei na capoeira já tinham matado ele. Mataram em Maracangalha, morreu no hospital. Assim Cobrinha Verde falou. Besouro bateu no filho do prefeito de Santo Amaro. Depois o prefeito mandou abrir sete covas para ele, ia cavando e benzendo as covas, depois pagou uma mulher para ficar com ele. A mulher pegou o patuá dele. Quando ele passou debaixo de uma cerca o arame cortou ele. Estava derrotado. Tinha uma venda que ele bebia cachaça todo dia. Quatro homens foram mandados por este prefeito para pegar ele. Quatro homens bons de facão.

Dois de um lado e dois do outro lado do balcão. Besouro botou uma cachaça e bebeu. O outro disse: “Você bebe e não oferece a ninguém que tá aqui”? “Eu não, se quiser você bebe. Compra e bebe”. Eles discutiram e jogaram cachaça no pé dele. Antigamente se jogasse cachaça no pé da pessoa era briga. Derrubou a cachaça nos pés dele aí, pronto. Foram pra fora, os quatro pra cima dele, facão pra cá, pra lá, mas por detrás veio um e cortou a barriga dele com uma faca de ticum. Faca de Ticum quebra qualquer mandinga. Foi o que Cobrinha Verde falou. Depois levaram ele para Maracangalha. Botaram numa canoa para levar ele. Internou. Já estava bom.

Mas ele perguntou: “Doutor, eu vou ser o mesmo Besouro”? “Não. Vai ser metade do Besouro”. “Então pode me matar”. Ele mesmo mandou matarem ele, não queria viver mais. Devem ter dado um remédio para ele. Apareceu morto. Cobrinha Verde que falou isso. Ele tinha corpo fechado. Bala batia nele e caía no chão. Depois quebrou a força. A mulher abriu o corpo dele. A faca de ticum cortou porque a mulher abriu o corpo dele. Pegou o patuá dele... quebrou a força. Quem tem proteção assim mulher não pode pegar. Quem tem essas mandingas não pode passar debaixo de cerca de arame, não come mingau de tapioca, não pode passar debaixo de vestido de mulher estendido em varal. Tem os dias certo de dormir com mulher. Diziam que era muita mulher que ele tinha.

Aí pronto, morreu. Ele era trapicheiro e trabalhava nas usinas. Trabalhou em Maracangalha, na Usina Aliança, Usina Itapetingui. Trabalhava cortando cana. Como trapicheiro ele trabalhava embarcado. Diziam que o barco navegando ele jogava capoeira. Jogava também no cais, na beira do Rio Subaé, em Santo Amaro. Era desordeiro, mas fazia por vingança, assim me falaram, não procurava briga com ninguém. Defendia as pessoas. Tomava a arma da mão da polícia para soltar uma pessoa e brigava com a polícia. Era muito sabido também esse Cobrinha Verde, muito mandingueiro, diz que sabia de tudo, mas quebrou a força, fez coisa errada e quebrou a força. Tinha umas orações muito fortes, mas fez umas coisas errada, não sei o que ele fez que o santinho que ele tinha sumiu dele. Assim ele falou comigo. Teve problema. Ele tinha 66 orações na cabeça.

De tudo. Você vê ele lá embaixo, quando vê de novo ele está cá nas suas costas, voltava. Cobrinha Verde. Brigou muito ele, mas nunca foi preso. Eu nunca briguei. Capoeira é pra vida não pra briga. Você brigou, perdeu todo o valor seu. Mestre Pastinha brigava quando era novo, mas depois não brigava. Valdemar nunca foi de brigar, João Pequeno nunca vi brigar. Besouro e Cobrinha Verde que brigavam em Santo Amaro, eram protegidos das nega da costa. Sabe o que é nega da costa? Uma africana, chamava nega da costa antigamente, em Cachoeira. Traíra era brigador também. Cobrinha Verde andava com uma costela de vaca na cintura, um facão de dois cortes, chamava costela de vaca. Todo mundo usava navalha. Eu usava também, mas uma vez a polícia me pegou.

A polícia bateu num bar lá da Lapinha, me pegou e tomou minha navalha. Pode levar. Não quero mais não. Todo mundo usava navalha, Pastinha usava, Cobrinha Verde usava, Daniel Noronha usava, Livino usava, todo mundo usava. Tem ainda esse costume. Quem me ensinou a usar faca foi Pastinha e Cobrinha Verde, pra eu jogar faca com João Pequeno. A faca eu usava pro vídeo. Não uso faca não. Nem ensino pro meus alunos. Uma vez Valdemar tava ensinado jogo de faca pros alunos dele, a polícia passou, parou, disse pra ele. “Ensina tudo pro seus alunos menos jogo de faca”. Aprendi pouca coisa de faca. Mestre Pastinha sabia jogo de faca, esgrima, sabia usar a navalha.

Cobrinha Verde jogava navalha no cordão, com elástico, ia e voltava. Treinava com ele na casa dele. Mestre Pastinha montou três berimbau. Tinha um, botou mais dois, botou recoreco, atabaque, dois pandeiros, agogô. Botou castanhola, mas castanhola é negócio de espanhol, ele tirou. Tinha também viola, quem tocava era um rapaz de Santo Amaro chamado Damaro, que tocava viola toda segunda-feira na academia de Mestre Pastinha. Tirou a viola também. Na academia usava calça preta e camisa amarela porque Mestre Pastinha era Ipiranga, time dele. Pessoal todo que trabalhava na oitiva era tudo Ipiranga. Jogava na Graça. Mestre Pastinha gostava do time. Ele só usava branco, o chapéu preto, guardachuva. Mesmo com sol ele andava com o guarda-chuva. Ele usava pra defesa, era uma arma perigosa. A gente que era aluno usava preto e amarelo. Moraes usa preto.

Cobrinha usa preto. Lá no Rio todo mundo usa preto. Belo Horizonte usa preto. Europa toda usa preto. Aqui quis botar roupa branca. Paz. O branco tem mais força. João Pequeno usa branco também. Mestre Pastinha era muito reconhecido. Na capoeira Angola todo mundo procurava ele. Tinham muitos angoleiros na Bahia, mas o pessoal procurava Mestre Pastinha. A academia do Pelourinho enchia de turistas. Quando ele estava mesmo na ativa, jogava com oito, dez pessoas, os alunos todos. Dava trinta sapinho, vinte rabo-de-arraia em cima de você, jogava com Anselmo, jogava com Vermelho da Moenda dando rabo-de-arraia. Cobrava na porta, pagava na porta, mas era muito pouco.

O dinheiro era pouco naquele tempo no Pelourinho. Eu só andava viajando. Trabalhava com bate estaca na construção, civil, viajava para o sul, passava um ano fora da academia, em Itabuna, Ilhéus, trabalhando. Passei três meses na chapada Diamantina, batendo estaca, depois voltei. Passei mais um ano em Ilhéus, outro ano em Itabuna, trabalhando em construção civil. Treinava, este tempo todo eu treinava sozinho em casa. Levantava cedo, fazia café, ia treinar, treinar, treinar, depois ia trabalhar. Batia meio-dia eu treinava de novo. Treinava, treinava, treinava...Depois comia e voltava para trabalhar. Cinco horas; treinava na academia de Mestre Pastinha.

Quando não fazia serão. Depois ia pra casa dormir e no dia seguinte fazia tudo de novo. Sem parar. Eu gostava de capoeira. Em 1955, eu trabalhava num prédio no bairro do Canela. Eu estava trabalhando e aproveitava as horas vagas para treinar. Peguei uma escada. Subia e descia de cabeça pra baixo na escada todo dia. Pra fazer exercício. Treinava no porão direto ao invés de ir jogar dominó. Eu passei três meses, em 1958, na Chapada Diamantina, quando estavam construindo Brasília, eu passei três meses na Chapada Diamantina batendo ponte de Belém à Brasília. Trabalhando em construção civil. Bate estaca. E lá eu não tinha como treinar, treinava sozinho no meio do mato. Treinava sozinho com as moitas e com os bichos. Fazia todos os movimentos sozinho.

Não tinha ninguém para treinar. Viajei com três pessoas, mas ninguém sabia capoeira. Todo dia eu acordava cedo e treinava sozinho no mato. Treinava com os pé de mato. Rabo de arraia, sapinho, rolê. Passei um ano em Itabuna e um ano e meio em Ilhéus. Eu demorava pouco na Bahia, passava a viajar fora. Eu gostava de lá por causa da academia do Mestre Pastinha. Mas nunca fiquei parado não. Eu trabalhava em construção civil. Trabalhei de trapicheiro, de doqueiro, ajudante de caminhão, pedreiro, trabalhava nisso, pesado. Depois de sete anos me casei. Mas não parei a capoeira, fui direto. Casei na Bahia.

Depois de sete anos a mulher morreu, eu fiquei viúvo, até hoje sou viúvo. Tenho filhos criados já. Um estuda com João Pequeno, o Jurandir. Semana passada ele estava aqui, mas já foi embora. A capoeira regional foi mestre Bimba que criou. Ele fez dez anos de capoeira Angola. Depois mudou, disse que a capoeira Angola estava muito fraca, mudou para criar a luta baiana dele. Os mais considerados eram Mestre Pastinha e os angoleiros. Roda onde tivesse os angoleiro Regional não entrava. Na Festa da Conceição da Praia a roda rolava a noite toda, desde o dia oito até o dia nove, a Regional ficava olhando e não entrava. Uma que Mestre Bimba não queria e outra que antigamente os angoleiros entravam duro com eles. Se Mestre Bimba visse um aluno dele jogando na rua botava para fora da academia.

Depois foram acostumando. Iam na academia Itapuã, o finado Ezequiel, Camisa Roxa ia lá, todos alunos de Mestre Bimba. A capoeira de Mestre Bimba antigamente só tinha Mestre Bimba. Depois que a capoeira se estendeu no mundo todo cada um vai fazendo o que quer. Tinha uns balões muito bonitos, cintura desprezada, todo movimento tinha balão: balão de cintura, balão de pescoço... tudo de balão. Disse que foi do jiu-jitsu. Capoeira muito bonita a capoeira de Mestre Bimba. Capoeira de hoje tem soco, tem pontapé, com Mestre Bimba não tinha nada disso. Não, se um aluno jogasse na rua e tocasse a mão na roupa de um mestre.... Vixe!

Tinham o costume de jogar todo de branco, roupa branca, gravata, camisa muito bonita, sapato engraxado. Aquele que tocasse na roupa de um mestre desse...Perguntava: “Quem é seu mestre?”. “Meu mestre é fulano”. “Diga a ele que treinam pouco, tanto você quanto ele. Diga para lhe dar educação de jogo. Sujou minha roupa”. Porque antigamente tinha a domingueira. Era aquela roupa que você tinha para jogar capoeira no domingo. Não tem esse corrido “goma de engomá / ferro de batê”? A goma tirava da mandioca e passava na roupa dele, pra não ficar tremendo. Antigamente tinha ferro de carvão, botava o carvão numa caixa de ferro para acender e poder passar a roupa chamada domingueira. Era uma roupa pra tudo. Passear e jogar capoeira. Chegava em casa botava no guarda-roupa de novo, vestia a roupa de guerra para trabalhar no outro dia. Era uma roupa só pra domingo.

Capoeira Angola vem do trabalhador, vem de baixo. Trapicheiro, ajudante de caminhão, carregador, doqueiro, pedreiro, carroceiro, pescador, vem de baixo. Quando parava o trabalho já tinha um berimbau lá. O couro comia nas docas. “Não tem trabalho hoje não?”. Hoje é capoeira. Debaixo do pé de tamarineira lá o berimbau fazia sucesso. O pessoal jogava ali. Camisa de saco, descalço. Depois cresceu, a capoeira foi crescendo, crescendo, crescendo...aí pronto. Ninguém gostava de capoeirista. Se você era capoeirista e a filha de um cidadão daquele olhasse para você e se você quisesse namorar com ela o pai dizia: “Não. Aquele é capoeira, coisa de vagabundo, aquele é capadócio, malandro.

Quem joga capoeira é malandro”. Depois foi crescendo, crescendo, crescendo... hoje em dia quem está jogando capoeira é gente fina, acabou essa mania. Comecei a viajar pelo mundo em 1966. Fui para Dakar com Mestre Pastinha no Festival da Artes Negras. Eu, Gato, Mestre Pastinha, Júlio Roberto, Camafeu de Oxóssi. Festival Mundial das Artes Negras, pelo Itamaraty. Nós fomos para África. No dia que Mestre Pastinha foi tirar passaporte na Piedade para poder viajar ele não subia as escadas mais, veio carregado num carro, subimos as escadas com ele, eu, Gildo Alfinete e Roberto Satanás. Professor Valdir falou: “Se Pastinha não for ninguém vai”. Depois a gente viajou. Lá ele não jogou. Quase não enxergava mais, ficava sentado na sombra. Jogamos eu, finado Gato, Roberto, Gildo.

Camafeu foi tocando berimbau. Festival de Artes Negras de Dakkar. Foi muito bom lá. Fui com o grupo de Mestre Pastinha, foi o grupo de samba de Ataulfo Alves, foi Clementina de Jesus para cantar e outra cantora do Rio. Ataulfo Alves com samba. Eu sei que foi também o Paulinho da Viola. E Olga de Alaketu para fazer a comida baiana. Da Bahia foi o grupo de Mestre Pastinha e Olga de Alaketu na comida. Pastinha enxergava pouquinho. Ficávamos no hotel. De tarde, num larguinho, chegaram três rapazes. Sentou um com o balafon. Os outros dois estavam sem camisa com uma lata amarrada no pé. Cheio de pedras, uma lata pequenininha. Sapateando, fazendo tudo de capoeira.

Fazendo corta-capim, aú, mortal, rolê, fazendo tuto, tudo, tudo... Mestre Pastinha perguntou assim: “Como é que chama essa dança. Isso é capoeira”? “Não, não é conhecido como capoeira não, é nossa dança daqui. A gente não sabe o que é capoeira não”. Eles falavam em francês, mas traduziram pra gente. “A capoeira tá no Brasil, a capoeira Angola de vocês está no Brasil. O pessoal levou pra lá e agora vocês estão apresentando aqui”. Quando Mestre Pastinha perdeu a academia eu estava trabalhando na Moenda fazendo shows. Depois deram um lugar para Mestre Pastinha no Pelourinho.

Mas nunca foi como era a academia não. Caiu, os alunos saíram, foram embora. Mestre Pastinha ficava lá na porta, Cobrinha Verde ia lá dar aula, João Pequeno às vezes ia, às vezes não ia. Papo Amarelo ia lá também. O negócio caiu. Eu só andava trabalhando. Ia lá uma vez ou outra quando tinha uma folga. Quando eu estava em Salvador, quando eu viajava pronto. Passava três meses fora viajando a serviço. Aí voltava e ia pra lá, mas caiu mesmo, caiu. Pastinha morou no 14 do Pelourinho. Morava num quartinho ali. Ficou acabado lá, esquecido. Ninguém lembrava dele. Só Jorge Amado que deu três salários mínimos a ele. Mas ninguém ajudou ele. Eu ia lá ficar conversando com ele sentado no banco.

Tinha um corredor e a gente ficava sentado no banco. A mulher dele vendia acarajé na Fonte Nova. Dia de domingo gente ficava sentado com ele conversando na porta. Sobre capoeira. Capoeira é isso, isso, isso... Não reclamava. Mestre Pastinha, como vai? “Eu estou bem graças a deus”. Depois colocaram ele no asilo de velhos lá em Brotas, faleceu lá. Quando ele morreu eu não sabia, quando soube já tinham sepultado ele. Estava trabalhando na arena, na Ondina. Aí Vermelho falou: “Mestre Pastinha morreu”. E quando foi isso? “O enterro foi hoje”. Puxa vida... Eu nunca fui visitar ele no abrigo dos velhos porque não tinha tempo. Eu trabalhava em Salvador num posto de gasolina o dia todo lavando carros, o dia todo, não tinha tempo pra nada, de noite saía correndo fazer show na Moenda.

Um lugar de turistas – restaurante e casa de show – que fica na Boca do Rio. Comecei a fazer show na década de 1970. Fazia show no Hotel da Bahia. Depois a professora Emília, com o Viva Bahia, vendeu um show nos Estados Unidos, depois vendeu outro show na Europa. Tudo num mesmo mês. Tivemos que fazer dois grupos, um para o show dos Estados Unidos e outro na Europa. Eu fui pra Europa com umas vinte pessoas. O show era dirigido pela professora Emília. Viajamos a Europa toda, passamos oito meses na Europa fazendo show, em 1974. Irã, Tunísia, Oriente Médio.

Fazia tudo. Fazia maculelê, candomblé, puxada de rede, samba. Capoeira também. Capoeira de show. Depois voltei para Salvador. Fomos pra Europa de novo, passamos três meses na Europa indo de Barcelona a Madri. Fazendo shows em discotecas. Saía de Barcelona para Madri, no sul, no norte, fomos pra França, sul da França, norte da frança. Fomos para Itália, sul da Itália, norte da Itália. Em 1976. Foi muito bom. Gostava de viajar. Sempre gostei muito de viajar e fazer show. Na época que eu trabalhava no posto de gasolina a capoeira Angola estava por baixo, caída. Fiquei cinco anos sem fazer capoeira Angola. Não tinha como fazer? Não tinha. Trabalhando muito.

Capoeira Angola caiu. Só estava por cima a Regional. Capoeira Angola só tinha João Pequeno no Forte Santo Antônio. Cobrinha Verde tinha falecido. Mestre Pastinha estava doente. Valdemar só fazia berimbau. Ninguém jogava capoeira mais. Eu trabalhava na Moenda fazendo show. Trabalhava no posto de gasolina no Retiro. Cobrinha Mansa ia lá me chamar pra fazer capoeira. Eu vou, eu vou. Nunca fui. Passou quase um ano me chamando para ir pra lá. Um dia fizeram um encontro lá, em 1987. Eu fui ver o encontro, gostei, aí voltei pra capoeira Angola. Eu estava me sentindo mal.

Só fazia show, batia maculelê, puxava rede na Moenda, mas capoeira que é boa não jogava. Quando o Moraes fez o encontro e me chamou eu voltei pra capoeira Angola e voltou todo mundo. Voltou Valdemar, finado Zacarias, finado Bobó. Todo mundo voltou pra capoeira Angola. Moraes e Cobrinha foram no posto de gasolina me chamar, eu estava na Moenda. Me deram um salário pra eu vir pro GCAP. Deixei a Moenda e passei três anos trabalhando com o GCAP. Ensinando todo mundo lá. Depois de três anos não quis mais ficar lá. Fui trabalhar na Moenda de novo.

O Liceu de Ofícios abriu uma academia para mim lá embaixo no comércio. No quarto armazém, nas docas, onde tinha um depósito de cacau antigamente. Acabou esse negócio de cacau abriram um espaço para mim e para Nenel, filho de Mestre Bimba. Ele de um lado e eu de outro. Regional lá e Angola cá. Em 1990, fui chamado para Atlanta para fazer o Festival de Atlanta e eu vim.

Foram me chamar, mas nunca fiz fé. Surgiu esta viagem para o encontro de Artes Negras. Foram me chamar Daniel Dawson e Cobrinha também. Assim que cheguei e fiz o show lá Negro Gato disse: “Você vem para aqui”. Terminou lá eu vim para academia dele aqui. Tinha academia lá no Harlem, um espaço. Negro Gato era mais Regional. Capoeira regional de show. Vim para aqui. Tinha um bocado de gente fazendo capoeira. Tava aqui Galo, tinha o Maluquinho, o Motorista, o Amaral, tinha Omolu, Sônia e outras pessoas. Fiquei com ele um ano ensinando capoeira no Harlem.

Fazia capoeira e show em Woodstok, uma cidade que tem aqui perto, duas horas de Nova York. Fazia show lá e ensinava capoeira aqui. Risadinha já estava comigo no Harlem. Ela foi lá treinar capoeira assim que eu cheguei. Risadinha tomou a frente e abrimos o salão. Passei sete anos lá. Sim. No 69. Depois venceu o contrato e o salão de baixo ia entrar em obra. O dono de lá é o mesmo daqui. Estava pra alugar aqui. Eu vim pra aqui. Tenho seis anos aqui já. Quando criei esta academia perguntei à professora Emília: Professora, qual o símbolo que ponho na minha academia?

Foi lá em Woodstock. Ela me deu uma pulseira de oxum, Cabello copiou o desenho da pulseira, duas cobras. Emília Biancardi, professora de dança folclórica, ela está no Pelourinho, num casarão de cinco andares que deram para ela fazer o trabalho dela. Brasil e África. Ela me disse assim: “Isto aqui é Brasil e África porque os capoeiristas são duas cobras, os angoleiros são duas cobras no chão”. Cabello desenhou para poder devolver a pulseira a ela. “Faz o desenho, mas devolve minha pulseira”. Moraes treinou comigo na Academia de Mestre Pastinha. Treinou comigo lá, mas eu não era mestre, era aluno também. Treinava eu, Getúlio treinava ele, João Pequeno treinava ele, mas eu puxava mais duro pra cima dele, puxava mais jogo pesado. É assim, assim, assim, assim.

Mestre Pastinha não enxergava mais pra dar aula. Quem dava aula lá era Getúlio, João Pequeno. E eu pegava pesado em cima dele. Eu não ligava pra isto não, queria mais é saber de teatro, não cresci pra ser mestre de capoeira. Eu quero fazer é maculelê, dançar candomblé, dança e teatro, eu gosto de fazer é isso. Viajar fazendo show de dança, sempre gostei de fazer isto... Tá vendo aquele papel ali? Mestre Pastinha deu pra mim, João Pequeno, Gildo, Roberto, o pessoal velho de lá. Mas não é papel que você veste, seu trabalho é que você vai caprichar.

Se amanhã ou depois seu mestre te der um papel como mestre, o papel não vale nada. O que vale é seu trabalho daqui pra frente, com seus alunos, com sua capacidade com o pessoal. Todo mundo tem que ter você como gente boa e dar muito respeito pra você. Gosto muito de dar aula. Gosto mais de dar aula pra gente que não sabe nada. Eu quero passar pra eles. Os avançados já sabem. Depende... fazer mestre é muita responsabilidade, fazer mestre de capoeira...

Eu quero botar meu filho, Jurandir, para continuar meu trabalho. Mas também tem que trabalhar muito. Tem muito que aprender. Tem aluno de quinze anos aqui, mas que não está preparado ainda. Depende da conduta dele. As vezes é bom de capoeira mas não tem força para tomar conta de uma academia, assumir um cargo. As vezes a pessoa é muito boa de capoeira mas não sabe ensinar. Sim, sinhô, uma religião. Mas a pessoa tem que trabalhar, olhar quem pode, devagarinho, treinar, se dedicar... A capoeira é pra todo mundo, nem todo mundo é pra capoeira.

Compreendeu o que eu falei? Você gosta de capoeira, chegou aqui pra fazer capoeira, mas depois de um ano você vai embora. Não fica direto na capoeira, não tá mexendo com a capoeira. Tem gente que treina aqui um mês, dois meses, vai embora e some. “Ah, estou cansado, não vou treinar mais não”. Por isto eu estou dizendo, a capoeira é pra todo mundo, nem todo mundo é pra capoeira. Capoeira é pra todo mundo. Tá no nosso corpo.

“Eu sou a fruta madura
que cai do pé lentamente
Na queda larga a semente
Procura uma terra fresca
pra ser fruta novamente”.

Na Bahia eu tava fazendo capoeira sem ajuda do dia de amanhã. Bahia é terra muito boa, abençoada, graças a deus. Adoro minha Bahia, dou valor muito a minha Bahia, mas pra capoeira não dá. Eu vim para aqui, cresci. Gosto muito de Nova York. Adoro aqui. Tudo. De tudo eu gosto daqui. Volto pro Brasil. Mas se Deus me permitir ficar aqui...Se eu estivesse com esse dinheiro lá, que desse pra viver, ia morar lá. Brasil é terra abençoada. Tá todo mundo saindo de lá para vir pra cá e pra Europa.

Não dá não. Não dá pra viver de capoeira, não dá valor. Passa necessidade. Na Bahia nego não dá valor. Tudo de bom me deram aqui. No Brasil também tive tudo de bom para mim, graças a Deus. Mas tem uma coisa no Brasil que o pessoal não tem, não tem dinheiro, não cresce, não tem dinheiro. Eu sou aventureiro, sou andarilho, gosto de andar pelo mundo. Eu gosto de andar muito, desde dez anos de idade eu ando pelo mundo, eu sou aventureiro. Eu parei aqui, gostei daqui.

segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

Entrevista do Mestre João Grande ao Mestre Poloca

Entrevista do Mestre João Grande ao Repórter Abelha (Mestre Poloca - INSTITUTO NZINGA DE CAPOEIRA ANGOLA - INCAB), realizada na quarta-feira, 01 de setembro de 2004, em Ponta de Areia/ ltaparica.

NGOLO E NGUNZO


Expressar em palavras as emoções sentidas nesses últimos quinze dias de agosto, pela passagem majestosa do Mestre João Grande pela cidade de Salvador, pode parecer difícil se a gente escolher demais as palavras, mas se, por outro lado, deixarmos a simplicidade e a sinceridade guiar nossos sentimentos, a tarefa se torna fácil. Ele é simples dentro da sua inocente profundidade e na precisão do seu movimento. Mesmo sendo a celebridade que é, antes porém era um dos nossos mestres que estava ali nos abençoando com o seu Ngunzo (força) e batizando nosso terreiro com sua mandinga.

Tive o privilégio de estar com ele em muitas situações, tanto em lugares públicos como em locais mais restritos e pessoais. Ele chegou aqui na quinta, 12 de agosto e fez contato comigo e Paulinha dizendo que queria visitar o Grupo Nzinga no dia 15, domingo, às 14 horas, aproveitando uma brecha em sua agenda. 

No sábado, 14, ele foi na roda do M. René, à tarde. A noite, foi na roda do M. Moraes e também na do M. João Pequeno. Chegou a mil. No domingo, às 14 horas, lá estava ele no Nzinga, pronto para mais uma "rodada" de capoeira. Ele anda feliz e, juntos, rimos muito. Fizemos então, uma pequena roda, intimista. Não houve desfile de vaidades. Foi pura vibração positiva. Ao final, a sensação era que todos estavam ainda mais felizes do que quando chegaram, inclusive o Mestre. De lá seguimos para o Terreiro Tanuri Junsara (Angola), era festa pra "Tempo". Foi um momento de puro encantamento, pois a festa foi uma das mais bonitas já vistas. Segundo ele, foi um dos momentos inesquecíveis dessa sua viagem.

Na quarta feira, 18 de agosto, era o meu aniversário, mas nós faríamos uma roda de comemoração somente no dia seguinte às 19 horas. Pedi ao Mestre João Grande que me desse de presente de aniversário a sua presença naquela roda. Parecia impossível, pois ele estava a serviço do evento que o havia trazido para Salvador. Mas eu tenho sorte, e no dia lá estava ele, antes mesmo dos outros convidados chegarem. Nova explosão de alegria, afinal era um privilegio tê-lo por duas vezes em nosso espaço. Essa roda foi muito bonita e alegre. Contou também com as presenças ilustres do Mestre Valmir (Fica) e do CM Boca do Rio (Zimba), Cris (Acanne), Marco Aurélio, Janaina, Linda e outros. No final teve até bolo de aniversário.

No dia seguinte, teve uma cerimônia lá na Associação Brasileira de Capoeira Angola (ABCA) quando foi entregue o certificado de Embaixador da Capoeira Angola em Nova Iorque para o Mestre João Grande. O Mestre Gildo ficou emocionado e chorou no ato da entrega do título e também quando mostrou a bengala, a camiseta da CECA e o pano desenhado e pintado pelo saudoso Mestre Pastinha. Fui convidado pelo homenageado para fazer com ele o seu único jogo naquela noite. Uma tremenda honra.

No decorrer da semana que se seguiu, o Mestre foi desfrutar da tranqüilidade de seu belo retiro na Ilha de Itaparica.

Senti nele o desejo de impregnar-se com as coisas da terra, as coisas do cotidiano das pessoas, da religião, do sotaque baiano, das coisas simples da vida, tanto quanto é o canto de um bem-te-vi em seu quintal ou o grito do vendedor de aipim ao passar pela porta da sua casa, anunciando a sua mercadoria, onde pude ir visitá-lo para passear e realizar a entrevista que se segue. Pena não poder colocar o áudio com suas gargalhadas e nem tampouco o motivo delas. 

ENTREVISTA 


P - Como foi que o Sr. conheceu a capoeira angola? Como foi o seu primeiro olhar para a capoeira? 
JG - Foi o corta-capim! Foi o seguinte: passou dois meninos de mais ou menos 19 anos, passou assim na rua e fizeram o corta-capim. Tinha dois senhores na porta de uma venda. Aí Chico falou pra Pedro: Pedro, isso aí é dança de nego nagô. Passa na pessoa ali e a pessoa cai. O senhor que falou ficou e o que ouviu foi embora. Eu fiquei ali escutando toda a conversa deles. Eu sou muito curioso. Eu tinha 10 anos nesse dia. Depois eu perguntei ao que ficou: o que é dança nagô? E ele: não sei, é o pessoal que veio da África, que trabalha no engenho de cana. E saí procurando o que era corta-capim. Andei por aí e trabalhei em fazenda de gado como ajudante de vaqueiro, de lavrador plantando feijão, mangalô, arroz, café, cacau, tudo. Trabalhei como ajudante de tropeiro. Procurei o que era corta-capim e ninguém me informou. Em 1953 eu já tava com 20 anos e vim morar em Salvador, na rua Amparo do Tororó, N°19. Morei ali um ano trabalhando de graxeiro, em casa de família: varrendo casa, lavando prato, fazendo compra na rua, tudo. 

P - Que família era essa? 
JG - O homem se chamava Edgar e a mulher se chamava Julia 

P - Eles eram ricos? 
JG - Não, eram pobres, mas o marido trabalhava de mascate. Trabalhei ali um ano. Depois fui trabalhar com um espanhol na Av. Vasco da Gama, num depósito de cachaça. Morei no quartinho dos fundos. Levava cachaça, vinagre. Quando é um dia, passei na ponte que ligava o Tororó ao Garcia, e por ali tinha a Roça do Lobo. Embaixo da mangueira que tinha ali, os peões faziam uma roda de capoeira. Cheguei lá e encontrei João Pequeno, Barbosa, Gordo, Cobrinha Verde, Tiburcinho, Manoel Carregador. E a Roda rolando. Eu via os 3 paus dos berimbaus. Eu perguntei a Barbosa e a João Pequeno: 

- O que é isso? 
E eles: 
- Isso é capoeira! 

Na hora que eu tava perguntando um cara fez o coda-capim e aí eu me lembrei de quando tinha 10 anos. Perguntei onde era que se aprendia e João Pequeno disse que me levava lá em Brotas, onde Seu Pastinha dava aulas. 

P - O Sr. tinha quantos anos nessa época? 
JG - Tinha 20 anos. Lá, João Pequeno falou: 

- Seu Pastinha aqui tem um rapaz que tá querendo aprender capoeira. 
Ele disse: 
- Senta aí. Como é que você se chama? 
- Eu me chamo João. 
- O que é que você faz? 
- Bom, eu pratico esse negócio de bola, pratico o negócio de... . 
Seu Pastinha disse:
- Deixa tudo que isso não presta. Siga a capoeira que você vai crescer na capoeira (acertou em cheio!). 
Eu pensei: 
- Este homem sabe de nada.... (Risos). Eu paguei 20 mirréis na hora e sentei. Aí chegaram os antigos: Traíra, Valdemar, Totonho de Maré, Livino, Daniel. P pessoal todo da velha guarda. Aí Seu Pastinha foi jogar.... Depois que ele jogou é que eu acreditei no jogo dele. Eu pensei: 
- Esse velho sabe das coisas. 
Ele me disse: 
- Venha treinar aqui na terça-feira. Pastinha me treinava, João Pequeno me treinava. Um dia o Mestre quis se mudar para um lugar maior e aí um estivador arranjou um casarão na ladeira do Pelourinho, N°19, onde acontecia todo sábado à noite o Baile da Iara. Nesse baile vinha estivador, "doqueiro", trabalhador, peão. Treinava na terça, quinta e no domingo era a roda. Aos poucos, os outros capoeiristas mais antigos passaram a freqüentar o casarão. 

P - Tudo que o Sr. aprendeu de capoeira foi tomando aula com Seu Pastinha ou o Sr. teve aulas com outro Mestre? 
JG - O Mestre Cobrinha Verde me treinava de manhã, na academia dele lá no Chame-chame. Eu ia pra lá dia de domingo de manhã. Praticava a capoeira lá de manhã. Era eu, o finado Gato Preto, Didi, Bom Cabrito, Rege de Santo Amaro... 

P - Quer dizer então que o Sr. bebeu na fonte de Cobrinha Verde e do Mestre Pastinha? 
JG - Isso. Aí eu ficava com Cobrinha Verde até meio-dia. la pra casa e comia uma farinha. Seguia pro Mestre Pastinha umas 2 horas da tarde. Lá eu comia carne. Traíra também me deu "coisa". Valdemar me deu, finado Livino me deu e Noronha me deu, todos em palavras. 

P - O Sr. também ia lã no Barracão de Mestre Valdemar? 
JG - la sempre lá em Valdemar. A coisa pegava fogo. Misericórdia! Só tinha cobra criada ali. Era Evanir, Tatá, Bom Cabelo, Chita Macário, Sete Molas, Zacarias. Todos eram cobras criadíssimas. Quando eu tava com três meses de capoeira e me jogaram fora da roda lá no barracão. Antonio Cabeceiro era perverso como quê. Eu tava jogando com Evanir. O jogo pegando com Evanir e ele aí comprou o jogo sem eu ver, exatamente na hora em que eu dei uma meia lua de costas sem olhar, ele aí me jogou fora da roda, no meio da rua. Nem vi. Me sujei todo e tive que ir embora. No outro domingo fui de novo. Fui ver como é que Evanir jogava. Olhei primeiro e fui jogar com ele de novo. Ele entrou e eu dei uma rasteira nele, ele se saiu e devolveu a rasteira e eu pisei na perna dele que rasgou a calça de cima em baixo. Ele aí ficou maluco de lá pra cá e depois... priii apitaram para parar a roda. Lá tinha apito. 

P - E quem é que apitava, era o Mestre Valdemar? 
JG - Não, um velho que tinha lá. Ele apitava para parar ou para começar. Aí teve uma roda na Conceição da Praia, dia oito de dezembro. Chegou a turma de Valdemar, tinha uns 10 lá. Eu só andava com Deus e meu Santo. Eu entrei e logo Bom Cabelo comprou. Eu dei uma meia lua nele e ele deu uma meia lua em mim e eu saí e dei a cabeçada nele e ele encaixou de leve o joelho no meu queixo. Fechei o jogo e fui ajeitando, ajeitando e quando ele facilitou toquei a cabeça nele. Aí Evanir comprou o jogo. Já tinha a dívida do barracão e aí nós enrolamos (fazer rolê), pá pá pá.. rolamos cá, rolamos lá... Eu usava sapato esporte, sem cadarço. Mestre Pastinha sempre me dizia que quando entrasse, fechasse a guarda com os dois braços protegendo a barriga e o peito. Então, ele entrou na tesoura. Eu tirei um dos braços da guarda para ajeitar o sapato que lava quase saindo do pé, nesta hora Evanir virou rápido e acertou com o bico de seu pé o meu rosto, numa chapa de frente, um pouco abaixo do olho. Feriu o meu rosto mas o jogo continuou. Mestre Bugalho estava no berimbau com um charuto aceso no canto da boca. Só tocava São Bento Grande acelerado. Joguei pra cá e pra lá, aí tombei e ele caiu pra lá e aí parou o berimbau. Parou a bateria. Aí eu fui botar sal no olho, limpei tudo. Eu e Evanir ficamos de mal durante um ano. Sem se falar. Quando eu ia pro carnaval, às vezes ficava por perto da Cantina da Lua, no meio da rua. Eu fui subindo e me falaram que Natividade, aluno de Pastinha, tava apanhando de Evanir na roda. Eu fui lá. Ele me viu, parou e perguntou: Quem vai jogar? Quem quiser jogar comigo pode vir. Ficou desafiando. Deixei ele recomeçar o jogo e aí eu fui lá e comprei o jogo com ele. Aí foi pau! Ele jogava em baixo, não subia. Fazia tudo em baixo. Jogamos duas horas de relógio, no pau. Aí depois do jogo a gente se cumprimentou e acabou o mal estar e ficamos amigos. 

P - Mestre, qual o capoeirista antigo que mais lhe impressionou jogando capoeira? E na atualidade? 
JG - Dos antigos, todos eles. E dos mais novos, de 1950 por aí, eu gostava de ver os alunos de Valdemar: Diogo, Chita, Evanir. Tinha Virgílio... 

P - O barracão do Mestre Valdemar era freqüentado por grandes capoeiristas. No livro do "capoeirólogo" Frede Abreu — O Barracão do M. Valdemar — é contado que os que iam pra lá armados tinham que deixar as suas armas na entrada do barracão, na mão de pessoas de confiança do Mestre. O Sr. presenciou essa cena também? 
JG - Vi muitas vezes isso. Eu ia pra jogar com Chita, Macário, Diogo, esses eram bons! Virgílio também era muito bom. Tinha um Cobrinha lá que... deu um aú e do aú que ele deu panhou João Pequeno na rasteira. É finado. Chamavam ele de Cobrinha. Na academia de Pastinha eu comprei o jogo com ele lá e ele quis fazer isso comigo também e eu joguei ele fora. O pai dele aí comprou o jogo comigo. Ele era filho de Espinho Remoso. Os três juntos: Cobrinha, Espinho Remoso e Diogo tavam lá. Jogamos e ele num me achou e nem eu achei ele. Foi um jogo duro que não teve vencedor. 

P - O Sr. nota alguma diferença da capoeira que se jogava antigamente e a capoeira de hoje? 
JG - Muita diferença! No jogo, no canto, no ritmo. Hoje em dia quase não se canta ladainha. Às vezes é uma só na abertura da roda e acabou. Na chula existem alguns versos que não devem ser esquecidos: iê volta do mundo, que o mundo deu, que o mundo dá; iê menino é bom; ié é cabeceiro; iê é mandingueiro. A capoeira tá perdendo a raiz por causa dessas coisas. Os pandeiros querem tocar mais alto que o atabaque, sem respeitar a hierarquia dos instrumentos. O ritmo tá muito rápido. Faz o jogo acelerar e perde toda a beleza do jogo. O jogo só é bonito quando você joga em cima do berimbau. Eu jogava muito bonito quando Valdemar tocava o berimbau. A gente ia lá e voltava e o berimbau marcava. 

P - Hoje muito poucos Mestres chamam a dupla de capoeiristas no pé do berimbau para fazer alguma observação, dar alguma dica ou coisa assim. O que o Sr. acha disso? 
JG - É verdade. Não chamam não. Às vezes um tá pisando na roupa do outro e mesmo assim o berimbau não chama. Qualquer pancadinha no jogo, chama-se no "pé do berimbau", faz apertar a mão do camarado e sai no jogo de novo, pode até não se dizer nada, mas tem que chamar. Temos que puxar pelo valor da tradição. 

P - Como é para o Sr. ensinar Cultura Negra principalmente para os americanos? 
JG - Ah! Eu me sinto muito satisfeito. Muito bem. Capoeira é pra todo o mundo. É pra homem, menino e mulher. É pra preto, vermelho, azul e amarelo. Tá no nosso sangue. Tem gente que diz: a capoeira é pra preto... Não. É pra quem quiser aprender. A gente já nasce com a capoeira no corpo: é o branco, é o preto, é o vermelho, é o azul. O filho de Risadinha é louro e de olhos azuis e tudo, 5 anos e já tá jogando capoeira legal. Joga com todo o mundo lá. 

P - E os americanos? Eles dão muito valor à capoeira? 
JG - Dão muito valor à capoeira. Principalmente as mulheres. Elas se dedicam muito. Os homens treinam também mas não mais que as mulheres. Na Europa, quando tem um encontro assim vai tanta mulher e todas com seus berimbaus. 

P - Por que o Sr. não forma Contra-Mestres ou Treinei em seu grupo? 
JG - Porque não chegou o tempo ainda... 

P - O Sr. lembra de quantas mulheres jogando capoeira antigamente? 
JG - Eu vi uma mulher jogar... foi uma sergipana... em 1952, jogou com Joel, aluno do finado Daniel. Era uma mulher baixinha, de calça e jogava legal. 
 
P - Depois da sua experiência de dar aulas na CECA (Centro Esportivo de Capoeira Angola) e no GCAP (Grupo de Capoeira Angola Pelourinho), que outras experiências de ensinar capoeira o Sr. teve aqui na Bahia? 
JG - Quando eu saí do GCAP, em 87, depois de ter ficado 3 anos lá, dei aulas nas Docas, numa parceria com o Liceu de Artes e Ofícios no qual ensinava a 70 jovens. Pra isso acontecer contei com a ajuda de Frede Abreu, Mestre ltapoan e César Barbieri. 

P - O Sr. ficou pelo menos 5 anos afastado da capoeira. Qual o grau de responsabilidade que teve o GCAP no seu retorno? 
JG - Bom, ele deu força pra botar os Mestres velhos pra cá de novo. Aqueles encontros e oficinas com os velhos antigos fizeram crescer a capoeira. Teve um período que o GCAP também me ajudou nas despesas. 

P - O Sr. acha mais fácil ou mais difícil ensinar capoeira angola nos Estados Unidos? 
JG - Pra mim é a mesma coisa. Tanto faz aqui como lá. Você viu aí no encontro que vim trabalhar? Inscreveram 200 pessoas e quantas pessoas tinham lá? Poucas. E era tudo de graça. Ninguém foi lá. Se fosse lá na Europa certamente encheria. 

P - O Sr. é também grande fonte das músicas da capoeira. Tanto é que as principais músicas cantadas nas rodas de angola emanam da sua fonte. O Sr. faz essas músicas? Como é que elas surgem? 
JG - Às vezes eu lembro de alguma assim... mas também crio a maioria 

P - Nós temos sempre uma preocupação muito grande com o que cantamos. O que o Sr. pode nos falar sobre isso? 
JG - Acho que tem que tomar cuidado com fundamento da música, eu não tô falando mal, mas tem Mestre antigo aí que só canta Samba de Roda na roda de capoeira. Tá saindo da tradição. Agora, eu gosto de ver o pandeiro chamar também, repicar para chamar. Eu não gosto que toquem alto o pandeiro. Um verdadeiro angoleiro tem que ser rigoroso no ensino, é melhor pra quem tá aprendendo. 

P - Lá em NY o Sr. tem contato com pessoas que atuam dentro de organizações ou instituições que trabalham direta ou indiretamente com questões relacionadas aos afro-americanos? 
JG - Tem muitos lá. Eles participam nas aulas, vão lá. Eles me ajudam. Fazem atividade no colégio e me chamam pra ir dar palestra pra eles lá. Lá tem uma turma que me convidou para fazer uma apresentação num show lá e o nosso grupo tinha muito branco. Nós fomos e eles não falaram nada comigo não, mas falaram com outros lá: ah! O Mestre trouxe um bocado de branco pra aqui e tal... Depois me chamaram de novo e eu disse que não podia ir. Dei uma desculpa, para não ter que ouvir alguém me pedir para não levar os brancos do grupo. Teve também a minha participação em um filme há 3 meses atrás, com elenco formado só por negros. É um filme famoso que vai sair por agora. Com um artista muito famoso. Vai sair agora nos cinemas. Foi rodado no Harlem. Fizemos uma roda no meio do frio. Ele queria só que eu cantasse e tocasse berimbau. Alguns alunos meus jogaram. 

P - Como aconteceu a sua mudança para NY? 
JG - Bom, a nossa ida foi Daniel Dawson que arranjou. Levou eu, Moraes, Cobra Mansa, Nó e Lua de Bobó para o Festival de Arte Negra de Atlanta. Daí eu não voltei mais, já fiquei direto lá.. Isso foi em 1990. 

P - O que é que Gato Preto tem a ver com essa história? Foi ele que lhe arranjou os alunos e o espaço? 
JG - Foi. Ele tinha um espaço lá no Harlem. Ele dava aula lá. E eu fiquei morando na casa dele. Dava aula dia de domingo. 

P - Depois de lã do Harlem, o Sr. foi pra onde? Foi pra Manhattan? 
JG - Saí de Gato. Abri um espaço lá na 69 Street em Manhattan. Risadinha já estava me acompanhando. Fui pagando o aluguel devagarzinho e fui crescendo ali. Abri um salão pra dança ao lado do da capoeira. Eu o alugava. Depois me mudei de novo, lá mesmo. Já tem 5 anos que estou nesse endereço e acabei de renovar o contrato por mais 5 anos. 

P - Mestre João Grande, muito obrigado pela entrevista!