Páginas

quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Peleja de Riachão com o Diabo

Autor: Leandro Gomes de Barros

Riachão estava cantando
Na cidade de Açu,
Quando apareceu um negro
Da espécie de urubu,
Tinha a camisa de sola
E as calças de couro cru.

Beiços grossos e virados
Como a sola de um chinelo
Um olho muito encarnado
O outro muito amarelo,
Este chamou Riachão
Para cantar um martelo.

Riachão disse: eu não canto
Com negro desconhecido,
Porque pode ser escravo,
E anda por aqui fugido
Isso é dar cauda a nambu
E entrada a negro enxerido.

Negro - Eu sou livre como o vento
A minha linhagem é nobre,
Eu sou um dos mais ilustres
Que o sol deste mundo cobre
Nasci dentro da grandeza
Não saí de raça pobre.

Riachão - Você nega porque quer
Está conhecido demais,
Você anda aqui fugido
Me diga que tempo faz
Se você não foi cativo,
Obras desmentem sinais.

N - Seja livre ou seja escravo
Eu quero é cantar martelo,
Afine a sua viola
Vamos bater-se em duelo
Só com a minha presença
O senhor está amarelo.

R - Vejo um vulto tão pequeno
Que nem o posso enxergar,
Julgo que nem é preciso
Minha viola afinar
Pela ramagem da árvore
Vê-se o fruto que ela dá.

N - Riachão isto são frases
De homem muito atrasado,
Porque são vistos fenômenos
Que na terra têm se dado
Uma cobra tão pequena
Mata um boi agigantado.

R - M eu riacho pela seca
Dá cheias descomunais
Na correnteza das águas
Descem grandes animais
Jibóias, surucujubas,
E monstruosos "Jaguais"

N - O Jaguar rende-me culto
A serpente aos meus pés morre
No que chegar minha ira
Só um poder o socorre
Eu digo ao rio, pare aí!
A água pára e não corre...

R - Você não é Josué
Que mandou o sol parar
E esse parou três dias
Para a guerra se acabar
Nem Moisés que com a vara
Fez o mar também secar.

N - Faço tudo que eu quiser
Minha força não tem limite
Os feitos por mim obrados
Não vejo homem que imite
Eu determino uma coisa
Não há força que a evite!

R - Salomão também fazia
O que queria fazer
Por meio de mágica ou química
Quis segunda vez nascer
Mas em vez do nascimento
Conseguiu ele morrer.

N - Salomão facilitou
Confiado na ciência
Encaminhou tudo bem
Mas faltou-lhe a paciência
Se não fosse aquele erro
Tinha tido outra existência.

R - Eu necessito saber
onde é seu natural
Porque não sei se o senhor
Tem nascimento legal
De qual nação é que vem
Se procede bem ou mal.

N - Você vem interrogar-me
Eu lhe interrogo também,
Diga para onde vai
E de qual parte é que vem
Se é solteiro, ou casado
Diga que profissão tem?

R Não tenho superior
Sou filho da liberdade
E não conto a minha vida
Pois não há necessidade
Porque não sou foragido
Nem você é autoridade!

N - É preciso advertir-lhe,
Fazer-,lhe observação
M e trate com muito jeito,
Cante com mais atenção!
Veja que não se descuide
E passe o pé pela mão!

R - Eu, para cantar repente,
Já estou muito habilitado:
Conheço algumas matérias,
Sou um pouco adiantado
Tive estudo quatro anos,
Me considero letrado!

N - Sou professor de matérias
Que sábio não as conhece;
A lei que dito no mundo,
O próprio rei obedece
Meus feitos são conhecidos,
A fama se estende e cresce.

R - Você diz que tem ciência,
Dê-m e um a explicação:
Se a Terra faz movimento
De quem é a rotação?
Porque é que em 12 horas
Há um a transformação?

N - Não é o Sol quem se move,
Este é fixo em seu lugar,
A Terra está sobre os eixos,
Os eixos a fazem rodar,
Que, por essa rotação
Faz a luz do Sol faltar.

R - Descreva o grande mistério
Que entre nós a Terra tem:
De que é formada a chuva?
Em que estado ela vem?
Se é criada aqui perto
Ou noutro lugar além?

N - A água em estado líquido
Por meio de abaixamento
Que há na temperatura,
E pelo resfriamento
Essa água é condensada,
Ajudada pelo vento.

A corrente atmosférica
De um a montanha elevada,
Que ajuda a temperatura,
Forma nuvem condensada.
Do vento movendo as nuvens
É disso a chuva formada,

Que essa chuva, depois
Que toda a Terra ensopar,
Por meio da evaporação
Torna ao espaço voltar,
Reproduzindo, o processo
Que acabei de lhe tratar.

R - O senhor conhece bem
Este país brasileiro?
Ora, respondeu o Negro:
N - Eu conheço o estrangeiro
Desde o córrego mais pequeno
Até o maior ribeiro!

Por exemplo, o Amazonas,
Que extrema com o Pará;
O Pará com o Maranhão,
Piauí com o Ceará,
E assim todos os outros
Se alguém duvida, vá lá!

E se qualquer um daqui;
Pretendendo viajar
Até o Rio de Janeiro
E não querendo ir por mar,
Eu lhe ensino o caminho
Ele vai sem se vexar.

R - Como faz essa viagem?
Onde se encontra o caminho?
Lugar de uma só morada,
Sem haver mais um vizinho
Tanto que, em muitos lugares
Não anda um homem sozinho!

N - Pode qualquer um sair
Do Açu ao Mossoró;
Querendo pode passar
Na cidade Caicó,
Subir pela margem esquerda
Do rio de Seridó

Riachão disse consigo:
- Esse negro é um danado!
Esse saiu do Inferno,
Pelo Demônio mandado,
E para enganar-me veio
Em um negro transformado!

Disse o negro: - Meu amigo,
não queira desconfiar,
Garanto que o senhor
Não ouviu bem eu cantar,
Na altura que eu canto
outro não pode chegar!

R - Vá na altura em quer for!
Riachão lhe respondeu.
Remexa todos os livros
Que o senhor aprendeu
Eu não conheço esse ente
Que cante m ais do que eu!

N - Você ficará sabendo
O peso de um cantador
Quando me ver outra vez
Me trate de professor,
Render-me-á obediência,
Conhecerá meu valor!

R - O senhor diga o seu nome,
Eu quero lhe conhecer,
Pois só assim posso dar-lhe
O valor que merecer,
Em tudo que você diz
A inda não posso crer.

N - Você, sabendo quem sou
Talvez que fique assombrado,
Superior a você
Comigo tem se espantado
Os grandes da sua Terra
Eu tenho subjugado!

R - Eu canto há dezoito anos,
Há vinte toco viola,
Sempre encontro cantador
Que só tem fama e parola
Quando canta meio dia,
Cai nos meus pés, no chão rola.

N - Eu já canto há muitos anos,
Não vou em toda função,
Arranco pontas de touro,
Quebro o furor do leão,
Nunca achei esse duro
Que para mim tenha ação.

R - Garanto que de hoje em diante,
O senhor tem que encontrar
A força superior
Que o obrigue a se calar,
Porque eu boto o cerco,
Quem vai não pode voltar!

N - Manoel, tu és criança,
Só tens mesmo é pabulagem!
Vejo que falar é fôlego,
Porém obrar é coragem
Juro que' de agora em diante
Não contarás mais vantagem!

R - Meu pai chamava-se Antônio,
Seu apelido era Rio;
De uma enxurrada que dava
Cobria todo o baixio
Secava em tempo de inverno
Enchia em tempo de estio.

N - Conheci muito seu pai,
Que vivia de pescar,
Sua mãe era tão pobre,
Que vivia de um tear
Seu padrinho tomou você
E levou-o para criar.

R - Onde mora o senhor,
Que meu avô conheceu?
Que eu nem me lembro mais
Do tempo que ele morreu
E você está parecendo
Muito mais moço que eu!

N - Eu sei do dia e da hora
Que nasceu seu bisavô,
Chamava-se Ana Mendes
A parteira que o pegou
E conheci muito o frade
E o vi quando o batizou.

R - Bote sua maca abaixo
Conte essa história direito,
Da forma que você conta
Eu não fico satisfeito
Como ver-se um objeto
Antes daquilo ser feito?

N - Seu bisavô se chamava
Apolinário Cancão
Era filho de um ferreiro
Que o chamavam Gavião
Sua bisavó Lourença
Filha de Amaro Assunção.

R - Mas que idade tem você,
Que me faz admirar?
Conheceu meu bisavô
Eu não posso acreditar,
Assim destas condições
Faz até desconfiar.

N - Seu bisavô e o avô
Foram por mim conhecidos,
Seu pai, sua mãe, você
Antes de serem nascidos
Já estavam em minha nota
Para serem protegidos.

R - Que proteção tem você
Para proteger alguém?
Sua pessoa e os trajes
Mostram o que você tem
A sua cor e aspecto
Esclarecem muito bem.

N - Eu protejo você tanto,
Que o defendi de morrer
Você se lembra da onça
que um a vez quis lhe comer
Que apareceu um cachorro
E fez a onça correr?

R - Me lembro perfeitamente
Quando a onça m e emboscou
Já ia marcando o salto
Quando um cachorro chegou
A onça correu com medo,
Eu não sei quem me salvou...

N - Pois foi este seu criado
Que viu a onça emboscá-lo
Eu chamei por meu cachorro
Para da onça livrá-lo
Se lembra quando você
Ouviu o canto dum galo?

R - Eu me lembro disso tudo
Porque assim foi passado;
Mas que idade tinha eu
Quando esse caso foi dado?
Eu era tão pequenino
Que m eu pai teve cuidado.

N - Você tinha nove anos
Foi caçar um novilhote
Se entreteu com umas flores
Que tinha lá no serrote
A onça foi esperá-lo
Para sangrá-lo no bote.

Riachão disse consigo:
- De onde veio esse ente,
Que de toda minha vida
Conhece perfeitamente?
Este, será que é o Diabo
Que está figurado em gente?

N - O senhor pergunta assim
De que parte venho eu...
Eu venho de onde não vai
Pensamento como o seu
E saí do ideal
Primeiro que apareceu!

R - Agora acabei de crer
Que tu és o inimigo!
Te transformaste em homem,
Para vir cantar comigo,
Mas eu acredito em Deus
Não posso correr perigo!

N - Ainda não, lhe ameacei,
Nem pretendo ameaçá-lo!
Estou pronto a defendê-lo,
Se alguém quiser atacá-lo
Em minha humilde pessoa,
Tem um pequeno vassalo!

R - Não quero saber de ti,
Porque tu és traidor:
Desobedeceste a Deus,
Sendo Ele o Criador!
Fizeste traição a Ele
Quanto mais a um pecador...

N - Riachão, amas a Deus
Sendo mal recompensado!
Deus fez de Paulo um Monarca
De Pedro um simples soldado
Fez um com tanta saúde,
Outro cego e aleijado!

R - Se Deus fez de Paulo um rei,
Porque Paulo merecia
Se fez de Pedro um soldado,
Era o que a Pedro cabia:
Se não fosse necessário,
O grande Deus não fazia!

N - O teu vizinho e parente
Enricou sem trabalhar;
Teu pai trabalhava tanto
E nunca pode enricar
Não se deitava uma noite
Que deixasse de rezar!

R - M eu pai morreu na pobreza,
Foi fiel ao seu Senhor!
Executou toda ordem
Que lhe deu o Criador
E foi um a das ovelhas
Que deu mais gosto ao pastor!

N - Arre lá! Lhe disse o Negro.
Você é caso sem jeito!
Eu com tanta paciência,
Estou lhe ensinando direito
Você vê que está errado,
Faz que não vê o defeito!

R - É muito feliz o homem
Que com tudo se consola!
posso morrer na pobreza,
Me achar pedindo esmola
Deus me dá para passar
Ciência e esta viola!

O negro olhou Riachão
Com os olhos de cão danado,
Riachão gritou: - Jésus,
Homem Deus Sacramentado!
Valha-me a Virgem Maria,
A Mãe do Verbo Encarnado!

o negro, soltando um grito,
Dali desapareceu.
De uma catinga de enxofre
A casa toda se encheu,
Os cães uivaram na rua,
O chão da casa tremeu.

Riachão ficou cismado
Com cantor desconhecido,
Que, quando encontrava um,
Tomava logo sentido
O seu primeiro repente
Era a Deus oferecido.

Essa história que escrevi
Não foi por mim inventada:
Um velho daquela época
Tem ainda decorada.
Minha aqui só são as rimas
Exceto elas, mais nada!

Nenhum comentário:

Postar um comentário