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sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

A capoeira e os apelidos

Tenho acompanhado há a alguns meses algumas discussões sobre o uso de apelidos na capoeira. Acho a discussão válida, mas há alguns pontos que gostaria de comentar: 

1) apelidos não são obrigatoriedade. Não é todo mundo que tem - o que para mim, indica que a coisa não é tão universal assim.

2) eu acredito no apelido que surge espontaneamente, decorrendo de uma situação específica. O que me incomoda é o apelido forçado. No dia do batizado, chega o mestre e diz "agora você é o Blablabla". Aí falta contexto mesmo - é a imposição que vai de encontro à liberdade pregada pela capoeira. O apelido é Blablabla "porquê o meu mestre falou que é" é uma baita escrotice, se me perguntarem...

3) a questão do que é que denigre - não é todo apelido que rebaixa, independente da raça. Creio que todo capoeirista conhece casos de apelidos "bacanas" e "ruins", aplicados a negros, amarelos e brancos.

Nem todo apelido é Macaco, Gambá, Minhoca, Magrelo, Cheiroso ou Urubu. Tem Velocidade, tem Coração, tem nomes de bairros, cidades natais, etc. E ainda assim, nem todo Macaco é negro, nem todo Gambá é mal-cheiroso. A variação de motivações é tão grande quanto, ou maior que a variação de nomes...

O bullying preocupa sim, especialmente nos apelidos que surgem naturalmente do grupo (e não do mestre): será que o Tripa Seca está mesmo feliz com o apelido dado pelos colegas de treino ? Isso precisa ser avaliado com cuidado pelo responsável, mas não necessariamente inibido - afinal de contas, vivemos em grupo, e o grupo age sobre nós assim como nós sobre ele.

A pessoa em cheque pelo apelido pode ter sofrimento sim, mas também pode usar disso para sair mais forte - é uma questão de maturidade (e por isso o olho do responsável é tão importante). Chamar um menino gordinho, de 12 anos, de "Baleia Encalhada" é uma coisa se ele sabe lidar com isso, e outra coisa muito diferente, se ele não sabe. A palavra-chave para mim, nesse caso, é "atenção". 

Ser mestre não é só ensinar a se posicionar na roda, mas também a se posicionar no mundo. Ele deve intervir quando perceber ser necessário, ou quando os envolvidos solicitarem. E principalmente, ele deve ter autocrítica - para não se tornar ele mesmo o causador do sofrimento.

Resumindo, não acho que a questão de ser contra os apelidos é "muito barulho por nada", como muita gente grita por aí. Mas também não é o absurdo que tem sido pintado. 

Tem muitos casos no mundo, e cada um deles é um.

Axé,
Teimosia (feliz com o apelido)

Roda do Parque: 5 anos






quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

Por cima do mar, eu vim. Por cima do mar, eu vou voltar.

Em 2006, escrevi um artigo chamado "Menino, quem foi teu mestre", para o PortalCapoeira, celebrando o aniversário do Mestre Decanio.

Hoje, recebi a notícia do falecimento do mestre... E fiquei matutando sobre o quanto essa perda representou para mim, e para a capoeira como um todo. Decanio era um capoeirista. Decanio foi aluno de Bimba. Decanio ajudou a criar a Capoeira Regional. Decanio era um pensador. Decanio era médico. Decanio era poeta. Decanio foi mergulhador. Decanio era velejador. Decanio era acupunturista e massoterapeuta. Decanio foi militar. Decanio deu porrada em ACM, quando os dois eram crianças (palavras dele!). Decanio era judoca e pugilista. Decanio era escritor. Decanio era um partidário confesso do trabalho pelo próximo, sempre distribuindo bens materiais ou apenas conhecimento, em troca do prazer de distribuir.

Lembro-me perfeitamente de, durante uma conversa na qual eu insistia que "a capoeira estava se perdendo, que alguém tinha que fazer alguma coisa", ele me cortar asperamente dizendo "Teimosia, você é um grandíssimo chato. Faça bem a sua parte, e deixe os outros fazerem a deles. O tempo separa o joio do trigo". A força dessa fala foi um divisor de águas na minha vida - um conceito tão simples, mas ainda assim tão difícil de perceber sozinho. A intolerância mora na ponta do dedo que eu aponto para os outros, e quando o meu dedo aponta para alguém, três dos meus dedos apontam para mim mesmo - faça o teste, se tem dúvida...

Decanio era um baú inesgotável de informação. Do alto dos seus mais de 80 anos, viu a capoeira regional e a angola tomarem o formato que tem hoje. Viu a capoeira contemporânea chegar. Viu o advento dos uniformes se estabilizar, viu as cordas e cordéis serem criados. E mais do que ver, escreveu e falou sobre tudo isso. Tiveram origem nas conversas com ele, voluntária ou involuntariamente, os questionamentos que eu faço à tradição: coisas que para mim eram "antigas", para ele eram modernidade...

Os anos dourados da capoeira, que na minha opinião foram as décadas de 40 e 50 (quando Waldemar, Bimba, Pastinha, Canjiquinha e Cobrinha Verde estavam firmes na ativa), para Decanio foram o dia-a-dia. Ele viu, viveu e falou sobre momentos com os quais eu só posso sonhar: o passado que vejo nas fotos em preto-e-branco de Verger (seu grande amigo), para ele era cheio das cores de Carybé (também seu grande amigo).

Mas agora, Decanio se foi. O nome fica na história, e o legado é enorme - tire bastante tempo para ler, se quiser consumir tudo o que o mestre produziu. E lembre-se que as "regras de conduta" da Regional, foram Cisnando e ele que modelaram junto com o Mestre Bimba. E que os primeiros uniformes da Regional, camisas brancas listradas de azul, foram também idéia de Cisnando e Decanio. E que as primeiras apresentações de samba-de-roda do Mestre Bimba e das Tijubinas abertas ao público aconteceram num Simpósio de Medicina, a convite de Decanio. E que os Manuscritos de Pastinha só foram digitalizados e posteriormente entregues ao Forte da Capoeira por iniciativa dele. E que o "transe capoeirano" é um tratado físico e metafísico sobre o comportamento de capoeristas na função. E que as Gravações de Bimba e Cabecinha só chegaram a tanta gente por intermédio dele. A lista é interminável.

Decanio se foi, e para nós que aqui estamos, fica a pergunta: o que estamos fazendo para preservar a vida e a memória dos nossos mestres ? Os últimos tempos tem sido difíceis para a capoeira: Leopoldina, Arthur Emídio, Peixinho, Nacional, Bigodinho, João Pequeno, Tigrê, Negão Zumba... e Decanio. Mais ou menos conhecidos, todos deixaram sua marca na história - mas sem sombra de dúvida, muito do conhecimento se foi com eles...

Mas não quero sentir tristeza ao falar do mestre. Quero a alegria; o mesmo riso solto que ele tinha; o mesmo olhar enviesado, tirando onda com a sua cara sem você nem perceber; quero lembrar os causos de valentia, os olhos brilhando com a lembrança da brabeza de outrora; quero lembrar do sorvete de maracujá tomado na Barra, e depois lembrar da volta de ônibus de Salvador para Paripe; quero lembrar do jogo feliz que ele fez com Boinha durante a Zumbimba e depois lembrar da cervejinha gelada e da conversa animada nas tardes quentes, na Vivenda Yemanjá...



Descanse em paz, Deco!

Axé,
Teimosia